Caos rápido no sistema solar

Para além do caos lento, observado na evolução a longo termo dos elementos orbitais dos planetas do sistema solar, as manifestações de caos acontecem também a escalas de tempo mais curtas. Estes efeitos são subtis e vão desde a variação na inclinação do eixo de rotação dos planetas numa escala de tempo das dezenas de milhões de anos, até às cambalhotas caóticas de Hiperion, um satélite de Saturno, que podem ser observadas ao longo de algumas semanas.

Caos e ordem na cintura de asteróides

Como aprendemos com o trabalho de Poincaré sobre o problema restrito de 3 corpos (PR3C), assim que nos afastamos da descrição do sistema solar como um conjunto de problemas de 2 corpos desacoplados, a descrição das soluções complica-se e surgem órbitas com comportamento caótico. Uma aproximação muito útil para o estudo de vários aspectos do sistema solar é a de considerar que este é dominado por um PR3C, em que o Sol e Júpiter: – os dois corpos mais massivos do sistema solar, são os dois primários movimentando-se numa solução do problema de 2 corpos, enquanto os restantes planetas e asteróides são as "massas infinitesimais" sentindo somente a presença do Sol e Júpiter e não interagindo com estes, nem entre si.

Esta aproximação é particularmente importante para o entendimento da dinâmica dos corpos na cintura de asteróides entre Marte e Júpiter: – um conjunto de mais de 4000 corpos catalogados que formam uma nuvem em órbita em torno do Sol. Cada um destes asteróides tem a sua própria distância ao Sol e portanto o seu próprio período aproximado. Veremos que tanto a maneira como estes corpos estão distribuídos como a evolução da respectiva dinâmica tem a assinatura do PR3C, quer no que respeita à ordem, quer no que respeita ao caos.

Ordem na cintura de asteróides: Troianos
Na figura da esquerda estamos no referencial que roda com Júpiter à volta do Sol e no qual estes estão em repouso. Num PR3C podemos identificar, neste referencial, 5 pontos de equilíbrio:
  1. L1, L2, L3, os pontos colineares, são instáveis, o que significa que qualquer órbita lançada na vizinhança destes pontos é repelida,
  2. L4 e L5, os pontos triangulares, formam triângulos equiláteros com os dois primários e são estáveis, o que significa que qualquer órbita na vizinhança de um destes pontos permanece na vizinhança do ponto.
Pontos lagrangeanos no problema restrito de 3 corpos.
A cintura de asteróides.
À esquerda, pontos troianos e triangulares no problema restrito de 3 corpos; à direita, a cintura de asteróides.
A região do espaço que podemos considerar como vizinhança depende da relação entre as massas dos dois primários. Para o sistema solar, na vizinhança destes dois pontos encontram-se duas nuvens de asteróides, os troianos, que se encontram sensivelmente à mesma distância do Sol e de Júpiter e têm o mesmo período orbital de Júpiter, cf. figura da direita.
Caos na cintura de asteróides: Os hiatos de Kirkwood
Falhas de Kirkwood.
Falhas de Kirkwood.
Em 1857 Kirkwood (matemático e astrónomo) notou, enquanto estudava a cintura de asteróides, que muito poucos tinham períodos correspondentes às fracções 1/3, 2/5, 3/7 e 1/2 do período de Júpiter. Como sabemos, o período de um objecto em órbita à volta do Sol depende da distância a que se encontra este (3ª lei de Kepler). Assim sendo, Kirkwood identificou regiões da cintura de asteróides, cujos períodos correspondiam àquelas ressonâncias, estranhamente desprovidas de asteróides. Mais tarde foram descobertas ressonâncias adicionais onde também eram detectados poucos asteróides, mas durante muito tempo faltou uma explicação para estas falhas. Reconhecia-se que as ressonâncias poderiam levar a que sucessivos puxões de Júpiter desalojassem esses asteróides das suas órbitas, mas não se percebia porque é que este mecanismo só acontecia para algumas ressonâncias.
Modelo de wisdom para as falhas de Kirkwood.
Modelo de Wisdom para as falhas de Kirkwood.
Foi só anos 70 do séc. XX que, com o auxílio de computadores, foi possível compreender o essencial deste fenómeno. Jack Wisdom propôs um modelo simples, no qual o caos no PR3C joga um papel principal. O modelo de Wisdom, desenvolvido para a ressonância 3:1, envolve 2 processos. Numa primeira fase, os seus cálculos mostraram que Júpiter induz uma zona caótica na ressonância 3:1, definida por um intervalo de posições e velocidades no qual dois asteróides com condições iniciais muito semelhantes resultam no futuro em órbitas totalmente diferentes. Este facto permite que órbitas de asteróides quase circulares, nesta ressonância, possam aumentar significativamente a sua excentricidade. Quando isso acontece, a sua órbita pode ganhar uma excentricidade suficiente para cruzar as órbitas de Marte, ou da Terra, num processo que pode ocorrer num tempo relativamente curto, da ordem das dezenas de milhar de anos. A partir daqui, numa segunda fase, existe uma probabilidade de que o asteróide tenha um encontro próximo com um dos planetas, o que o pode ejectar para uma órbita totalmente diferente e mesmo para fora do sistema solar. Este modelo produziu nas simulações hiatos de tamanho semelhante ao observado num intervalo de tempo pequeno, quando comparado com a idade do sistema solar.
Os encontros próximos, que jogam um papel crucial no modelo de Wisdom, são um dos principais mecanismos do caos rápido uma vez que levam a variações bruscas na velocidade de um ou dos dois corpos envolvidos no encontro.
Este modelo teve consequências importantes para a compreensão do nosso sistema solar, uma vez que deu uma explicação para a proveniência dos asteróides que desde há muito colidem com a Terra.

Caos em Hiperion

Hiperion
A lua de Saturno Hiperion.

Hiperion é um satélite de Saturno descoberto em 1848. Até à missão Voyager 2 ter passado pelo planeta em 1981, pouco havia a dizer sobre este satélite. Com menos de um décimo do tamanho da Lua, Hiperion completa uma volta a Saturno em 21.28 dias numa órbita para lá da de Titã (a maior lua de Sturno) e muito depois dos anéis. O que a Voyager 2 mostrou foi um estranho objecto com a forma de uma batata, longe da tradicional forma esférica. Ainda mais estranho, o eixo maior de Hiperion foi observado a apontar para Saturno, embora a sua rotação fosse em torno do seu eixo mais pequeno com um período de 13 dias – o que é muito invulgar. De facto, devido às forças de maré, todos os satélites principais do sistema solar, incluindo a Lua, exibem uma ressonância 1:1 entre os seus períodos orbitais e de rotação. Sendo assim, porque é que Hiperion não evoluiu no sentido de mostrar, tal como a nossa Lua, sempre a mesma face a Saturno?

A explicação surgiu num artigo publicado em 1984 por Wisdom, Peale e Mignard, no qual previram a variação caótica da orientação do eixo de rotação de Hiperion. Devido à sua forma irregular e à excentricidade considerável da sua órbita, causada pela influência de Titã, com a qual tem uma ressonância 4:3, o seu movimento de rotação pode ser modelado pelas equações de um pêndulo com um forçamento periódico de amplitude considerável. Como vimos nas ressonâncias do sistema solar, pêndulos forçados, ou com ponto de suspensão oscilante, facilmente têm um intervalo de parâmetros em que, para a maioria da condições iniciais, exibem comportamento caótico. É o que acontece neste modelo para a descrição do movimento do eixo de rotação do satélite. No artigo, Wisdom e os seus colegas previram que Hiperion dá cambalhotas irregulares que podem ser observadas num intervalo de semanas. Curiosamente, devido também à influência de Titã, Hiperion apresenta um movimento orbital estável.

Foi o astrónomo James Klavetter que nos anos 80 tentou, com sucesso, confirmar, através de observações feitas na Terra, as previsões do modelo. Klavetter pensou, correctamente, que se é verdade que Hiperion dá cambalhotas atabalhoadas ao longo da sua órbita e sabendo que tem uma forma altamente assimétrica, estas cambalhotas serão visíveis da Terra, uma vez que o brilho aparente do satélite irá variar conforme o lado que estiver a reflectir luz para a Terra. Após observações que duraram algumas semanas e uma análise cuidadosa dos dados, Klavetter comprovou que o movimento do eixo de rotação de Hiperion é caótico, dando assim mais um triunfo à nossa descrição da dinâmica do sistema solar.

Caos na obliquidade dos planetas

Precessão do eixo da Terra.
Precessão do eixo da Terra.

Um dos parâmetros importantes na descrição da dinâmica dos planetas é a sua obliquidade, o ângulo que o eixo de rotação própria faz com o plano da órbita. Tal como piões sem atrito, os planetas, para além da rotação própria têm também um movimento de precessão (a rotação do seu eixo a obliquidade constante exemplificada na animação da direita) e um de nutação (variação da obliquidade). Como sabemos, diferentes planetas têm diferentes valores para a obliquidade e, embora a maioria tenha o mesmo sentido para o movimento de rotação própria, Vénus e Plutão rodam ao contrário e Urano roda deitado. A explicação tradicional para a obliquidade "invulgar" destes planetas era que esta seria o resultado de uma colisão com um corpo de grandes dimensões nos primeiros tempos do sistema solar. Hoje temos outra explicação pelo menos igualmente plausível, porque sabemos que a interacção gravitacional entre os planetas pode dar origem a movimento caótico na obliquidade, com possíveis grandes variações deste ângulo.

Foi Jacques Laskar quem primeiro estudou a influência das interacções gravitacionais entre os planetas na dinâmica dos seus eixos de rotação. Para um tempo de simulação de 18 milhões de anos, os seus resultados mostraram que os planetas interiores devem ter experimentado grandes variações na sua obliquidade, correspondentes a zonas caóticas observadas na dinâmica da precessão e da obliquidade. De facto, Marte permanece hoje em dia numa zona caótica e a sua obliquidade pode sofrer variações que podem ir de 0° a 60°. Mais uma vez, o mecanismo responsável por este comportamento caótico são as ressonâncias entre os períodos das perturbações planetárias e a frequência de precessão do eixo. Quanto aos planetas exteriores, não parecem exibir variações tão grandes.

Evolução da obliquidade e velocidade de precessão de Vénus.
Exemplo de uma evolução possível da obliquidade de Vénus ao longo da sua história. (Correia and Laskar, 2003)

No gráfico da direita, está representada a preto uma evolução possível que levaria à obliquidade actual de Vénus. O eixo vertical corresponde à frequência de precessão (segundos de arco/ano) e o horizontal à obliquidade (graus). Para a simulação foram escolhidas uma obliquidade inicial de 1° e um período de rotação de 3 dias. A linha a preto representa a evolução no tempo das variáveis frequência de precessão e obliquidade. A frequência de precessão inicial é de 16'' por ano, mas, devido a efeitos dissipativos causados por forças de maré, o planeta roda mais lentamente e esta frequência decresce. Quando isto acontece, a dinâmica entra numa zona caótica, marcada a cinzento, provocada pelas perturbações dos outros planetas, e que se estende até aos 80° de obliquidade. Depois de muitas variações bruscas a obliquidade pode aumentar o seu valor consideravelmente, enquanto os efeitos dissipativos restauram o comportamento regular e levam depois a obliquidade a aumentar de perto de 90° até 180°.

Apesar do exemplo da figura, não sabemos com certeza qual o percurso dinâmico que levou Vénus à sua inclinação actual, devido não só à presença de caos, mas também ao nosso desconhecimento sobre as condições inicias da rotação e à presença de complicados efeitos dissipativos. Diferentes condições iniciais podem levar a percursos muito diferentes que têm como resultado final a rotação retrógrada de Vénus. Por exemplo, existem simulações que mostram que a rotação retrógrada de Vénus pode não ter surgido devido a uma variação da obliquidade de mais de 90°, mas como o resultado das forças dissipativas, que no passado teriam parado a rotação directa do planeta que subsequentemente foi acelerado de novo por perturbações gravitacionais, desta feita no sentido retrógrado.

A existência da Lua foi necessária para o aparecimento de vida na Terra.

Como sabemos, a Terra tem uma obliquidade de 23.3° e é este ângulo o responsável pelas estações do ano no nosso planeta. Para termos uma ideia da importância deste valor para o clima na Terra, variações de 1° no seu valor provocam oscilações de cerca de 20% na energia recebida pelo Sol em regiões de latitudes perto dos 65°. E existem de facto oscilações desta ordem, uma das causas das eras glaciares já atravessadas pela Terra. No entanto, a história do nosso planeta diz-nos que este não sofreu as grandes variações na obliquidade que observamos nos restantes planetas interiores, uma vez que, nesse, caso a vida dificilmente se teria desenvolvido dadas as fortes oscilações climatéricas a que o planeta estaria sujeito. Qual a razão desta estabilidade da obliquidade do eixo da Terra?

Usando o mesmo modelo, mas levando em conta a presença da Lua, as simulações de Laskar mostraram que esta tem um efeito estabilizador da obliquidade da Terra. Se não fosse a Lua, a Terra estaria sujeita a oscilações da mesma amplitude das que ocorreram nos outros planetas interiores.

A figura seguinte mostra o resultado de uma simulação para a obliquidade da Terra e consequente insolação a uma latitude de 65°N, ao longo de 2 milhões de anos.

Para t < 0 a simulação leva em conta a influência da Lua e podemos constatar que a amplitude das oscilações da obliquidade é pouco maior que 1°. Por outro lado, em t = 0 a influência da Lua é desligada da simulação e podemos constatar como a partir daqui a Terra sofre grandes variações caóticas na inclinação do seu eixo. Quanto à insolação, uma medida importante para percebermos o quanto a obliquidade afecta a distribuição de energia solar pela superfície da Terra, podemos ver que na ausência da Lua esta iria sofrer variações potencialmente catastróficas para a vida na Terra!

Simulação da obliquidade e insolação da Terra ao longo de 2 milhões de anos, com e sem a presença da Lua.
Simulação da variação da obliquidade e insolação na Terra ao longo de 2 milhões de anos, com e sem a influência da Lua. (J Laskar, Physica D67 (1993), 257)