O problema de 3 corpos

O problema de 3 corpos.
O problema de três corpos.

O campo gravítico produzido pelo Sol é de tal forma dominante na dinâmica padrão que observamos no sistema solar que foi possível detectar empiricamente a solução do problema de 2 corpos (P2C) Sol / planeta: As elipses de Kepler.

No entanto, o próprio Newton sabia que o movimento do sistema solar apresentava em relação às leis de Kepler irregularidades provenientes da interacção gravitacional entre os planetas. Difícil era descrever estas irregularidades. Estudar um problema a mais de 2 corpos é uma tarefa complicada porque as equações destes sistemas não são resolvidas por nenhuma função conhecida. O problema é suficientemente complexo para que não seja possível achar uma solução que descreva o sistema para um intervalo de tempo arbitrário.

Desenvolveram-se então métodos perturbativos, em que sobre uma solução conhecida do P2C se introduzem os efeitos dominantes das interacções planeta / planeta como perturbações. Desta maneira podemos obter novas soluções aproximadas, para intervalos de tempo limitados, que podem ser um ponto de partida mais preciso para um novo cálculo perturbativo. Executar o método muitas vezes melhora a precisão da nossa solução, mas a obtenção de uma solução exacta implicaria um número infinito de iteradas.

Pierre Simon Laplace (1749 - 1827) foi o expoente máximo da confiança da ciência dos séc. XVIII e XIX na regularidade e previsibilidade do 'mecanismo de relógio', que regulava o funcionamento do sistema solar, expresso nas leis de Newton. No seu Tratado sobre a Mecânica Celeste, usando técnicas inovadoras da teoria de perturbações, Laplace melhora as soluções aproximadas conhecidas para o sistema solar e traz grandes avanços ao cálculo e caracterização das órbitas planetárias. Ao pretender explicar as irregularidades observadas nas órbitas de alguns planetas, identifica as ressonâncias planetárias como um mecanismo geral que pode produzir efeitos a longo termo. No entanto, conclui que estas perturbações se compensam, levando a perturbações periódicas na inclinação e excentricidade de alguns planetas que não põem em causa a estabilidade do sistema solar.

Apesar da robustez dos métodos desenvolvidos por Laplace, uma demonstração rigorosa da estabilidade do sistema solar continuava a faltar e foi este problema em aberto que motivou os trabalhos de Henri Poincaré (1854 - 1912) que levaram à descoberta do caos, assim como muitos outros ao longo dos últimos cem anos.

Um problema relacionado, que também passou pelas mãos de Newton e Laplace, e que, apesar de constantes desenvolvimentos, ainda hoje dá trabalho a matemáticos e a computadores de ponta é o problema da órbita da Lua. Parece estranho que o corpo celeste mais próximo da Terra, e que conhecemos tão bem, tenha ao longo de séculos resistido a uma descrição quantitativa rigorosa. A questão é que o movimento da Lua à volta da Terra não é bem aproximado pelo P2C Terra/Lua, pois o Sol está demasiado próximo e é suficientemente massivo para que a sua influência neste sistema seja redutível a uma pequena perturbação. Assim sendo, a formulação básica do problema do movimento da Lua é um problema gravítico mais complicado que o problema de 2 corpos, pois exibe caos.

O problema da estabilidade do sistema solar

A questão da estabilidade do sistema solar levou à descoberta histórica do caos. Os métodos usados para estudar órbitas planetárias a mais de 2 corpos (teoria das perturbações), numa época sem computadores, implicavam cálculos muito prolongados, que para lá de uma certa precisão se tornavam incomportáveis. A questão que se punha era a seguinte: Será que as soluções aproximadas que conseguimos calcular num problema de muitos corpos nos dão um entendimento fiel do comportamento destes sistemas em escalas de tempo da ordem da idade do sistema solar ou maiores, ou será que algo de inesperado está escondido para lá dos limites da nossa precisão?

Por ocasião das celebrações do sexagésimo aniversário do Rei Óscar II da Suécia e Noruega, a 21 de Janeiro de 1889, foi lançado um concurso em que os candidatos eram convidados a apresentar um trabalho original em resposta a uma das 4 perguntas propostas. Estas perguntas tentavam focar 4 problemas chave na fronteira do conhecimento matemático da altura e uma delas era precisamente a questão de saber se o sistema solar é estável ou não, em escalas de tempo arbitrariamente grandes. O vencedor do concurso foi Poincaré. Apesar de não ter dado uma resposta definitiva à questão proposta, os avanços que o seu trabalho representou para o conhecimento da natureza das soluções de uma equação diferencial viriam a mudar para sempre o nosso entendimento da gravitação newtoniana e do sistema solar.

Retrato de Henri Poincaré à esquerda e caricatura à direita.
Henri Poincaré.

Poincaré apresentou um trabalho sobre o chamado problema restrito de 3 corpos (PR3C), que pode ser tido como o sistema gravítico mais simples a seguir ao P2C. Neste modelo consideram-se dois corpos, os primários, que se movem entre si seguindo uma solução do P2C e uma terceira massa infinitesimal, que se move sob a influência gravitacional dos primários, mas que não afecta o movimento destes (numa 2ª aproximação o sistema solar pode ser visto como um PR3C, em que o Sol e Júpiter são os dois corpos primários e os restantes são as "massas infinitesimais"). Neste trabalho, apesar de familiarizado com os métodos tradicionais da teoria de perturbações para abordar problemas gravitacionais a mais de 2 corpos, a sua intuição extraordinária levou-o a atacar o problema de um ângulo inovador, fazendo novas perguntas que permitiram chegar a novas respostas. Poincaré descobriu que um problema tão simples como o PR3C exibe soluções caóticas: Órbitas com dependência sensível nas condições iniciais.

Secção de Poincaré.
Secção de Poincaré.

Em vez da abordagem tradicional da época a um problema gravítico a mais de 2 corpos, Poincaré procura caracterizar de uma maneira geral o comportamento qualitativo das soluções de uma equação diferencial e, para isso, leva a descrição dessas soluções para o espaço de fase. Aqui, interessou-se pelo comportamento de órbitas periódicas, no fundo órbitas fechadas como vimos no exemplo do pêndulo. Contudo, em vez de procurar seguir o movimento ao longo do tempo, apercebeu-se que podia encontrar órbitas periódicas considerando apenas os pontos de intercepção dessas órbitas com uma secção do espaço de fase: Se uma dada órbita passa por um ponto quando intercepta a secção, será que no futuro voltará a passar pelo mesmo ponto? Se a resposta for afirmativa, então a órbita é periódica.

Secção de Poincaré num pêndulo.
Secção de Poincaré num pêndulo

A imagem à esquerda faz parte do retrato de fases do pêndulo, com um grau de liberdade. A secção de Poincaré é, neste caso, apenas uma linha. Os pontos vermelhos assinalados são os pontos de intercepção de órbitas periódicas com a secção. Órbitas periódicas correspondem a pontos fixos na secção e, reciprocamente, pontos fixos na secção correspondem a órbitas periódicas.

Poincaré quis saber depois o que acontecia às órbitas na vizinhança de uma órbita periódica. O que descobriu foi que duas órbitas com condições iniciais ligeiramente diferentes podiam afastar-se rapidamente uma da outra e que em vez de marcarem um só ponto na secção, assinatura da sua periodicidade, podiam regressar repetidamente à secção desenhando formas extraordinariamente complexas sem nunca passarem pelo mesmo ponto. Poincaré descobriu órbitas irregulares com dependência sensível nas condições iniciais e reconheceu pela primeira vez a complexidade dinâmica no PR3C que mais tarde viria a ser chamada caos. As figuras seguintes sugerem o tipo de comportamento que podemos encontrar neste sistema.

Órbita irregular solução do PR3C.
Uma órbita irreglar de uma massa "infinitesimal" no PR3C.
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Na figura anterior é bastante evidente a impossibilidade de descrever a curva a vermelho com uma função simples da posição em função do tempo.

Secção de Poincaré no sistema Júpiter-Sol-Terra.
Secção de Poincaré do sistema Júpiter-Sol-Terra.

A figura da direita mostra uma secção de Poincaré do sistema Sol-Júpiter-Terra. Estamos no referencial que se move com Júpiter e é marcado um ponto cada vez que a Terra atravessa o plano perpendicular ao plano da eclíptica que passa pelo Sol e por Júpiter. Foram lançadas várias condições iniciais, representadas por diferentes cores, e é visível a coexistência de comportamento regular e caótico. As curvas fechadas são formadas por órbitas não caóticas, chamadas quasiperiódicas, uma vez que podem ser descritas a partir de uma combinação de movimentos periódicos com frequências independentes. As nuvens de pontos que observamos na figura são o resultado de órbitas caóticas do mesmo tipo das que Poincaré detectou: regressam à secção passando sempre por pontos diferentes e, nestas zonas, órbitas próximas divergem rapidamente, devido à dependência sensível nas condições iniciais. Nota: a condição inicial que corresponde a uma órbita real da Terra define uma órbita quasiperiódica.

Poincaré foi o vencedor do concurso pois apesar de não ter respondido directamente à pergunta, os segredos que desvendou sobre as soluções de um problema aparentemente tão simples como o PR3C mostraram muito mais do que à partida se estaria à procura, quando a pergunta foi feita. A partir deste trabalho, e durante todo o séc. XX, as pegadas do caos foram sendo detectadas nos movimentos do sistema solar.