Retratos de fase

Compreender o movimento é compreender a Natureza.

Leonardo Da Vinci

Logo após a publicação do Principia, em 1687, as novas gerações de físicos e matemáticos começaram a trabalhar no formalismo das leis de Newton, assim como nas suas aplicações aos mais variados sistemas, desde o pêndulo à força das marés, passando pelos projécteis. Com o trabalho de homens como Lagrange (1736 - 1813), Pierre Simon Laplace (1749 - 1827) e William Hamilton (1805 - 1865), a mecânica newtoniana desenvolveu-se como teoria física e matemática muito para além da formulação original de Newton. Mais tarde, os trabalhos de Henri Poincaré (1854 - 1912) marcaram uma nova etapa no entendimento da física de Newton. Esta nova etapa está ligada ao desenvolvimento do conceito de 'retrato de fase', uma forma muito geral e poderosa de visualizar a evolução de um sistema.

Quais as variáveis físicas que caracterizam o estado de um sistema?

A 2ª lei de Newton permite-nos, em princípio, escrever uma equação na qual procuramos uma solução r(t), que descreve a posição em função do tempo. No entanto, foi reconhecido que os detalhes matemáticos que envolvem a procura de uma solução, que a maior parte das vezes nem existe na forma de uma combinação de funções conhecidas, pode ofuscar o nosso entendimento do comportamento global do sistema. Pensou-se então em como obter informação sobre o comportamento de um sistema a partir das suas equações do movimento sem ter que as resolver explicitamente.

O primeiro passo foi reconhecer que o futuro de qualquer sistema mecânico fica inequivocamente determinado pela sua posição e pelo seu momento. Se o movimento do sistema for no espaço físico, cada uma destas grandezas terá três componentes, duas horizontais, segundo a direcção norte-sul e segundo a direcção leste-oeste, e uma vertical, de modo que conhecer a posição e o momento significa conhecer três pares de valores. Se o sistema for constituído por mais do que uma partícula, o seu estado fica descrito pela posição e momento de cada uma delas. Chamam-se a estes pares de variáveis os graus de liberdade do sistema, e o número de graus de liberdade, o número destes pares, mede a dimensão do espaço ambiente em que se dá o movimento, e o número de componentes do sistema.

Pêndulo em movimento
Pêndulo em movimento.
Pêndulo parado
Pêndulo parado.

Repare nas figuras anteriores, na primeira vemos um pêndulo em movimento, conseguimos "ver" a sua posição e a sua velocidade (e portanto também o momento). Na segunda vemos a foto de um pêndulo, conseguimos ver a sua posição, mas não temos informação sobre a sua velocidade. Qual o futuro dos dois pêndulos? No primeiro, como em cada instante temos informação sobre posição e momento, podemos prever a sua evolução. No segundo pêndulo, a nossa ignorância relativamente à velocidade não nos permite saber se ele está a subir ou a descer, não conhecemos a curto prazo o futuro dinâmico do sistema.

À esquerda, fluxo num rio; à direita, fluxo no espaço de fase.
À esquerda, fluxo num rio; à direita, fluxo no espaço de fase.

Poincaré foi o primeiro a perceber que a dinâmica global de sistemas descritos por equações diferenciais podia ser visualizada e estudada recorrendo a referenciais nos quais a cada grau de liberdade corresponde um par de eixos, um para representar a posição e outro para representar a velocidade ou o momento. Desta maneira pensou num espaço multidimensional onde um ponto, cujas coordenadas representam a posição e momento de cada partícula do sistema, define um e um só estado do sistema. A este espaço chamou espaço de fase. À medida que o tempo decorre, o sistema evolui e passa a ser representado por outro ponto no espaço. Como o tempo é contínuo, os estados ocupados ao longo do tempo traçam uma linha e definem aquilo a que chamamos uma órbita. A equação diferencial que descreve o sistema dá-nos no fundo a regra que rege a construção de todas as órbitas.

Tal como o fluxo de um rio determina o movimento de uma folha que caia em qualquer ponto da superfície da água. Da mesma maneira, a cada ponto do espaço de fase está associado um vector que nos diz "para onde o sistema vai". Num retrato de fase não desenhamos apenas uma órbita em particular, mas o conjunto de todas as órbitas possíveis do sistema, tal como quando representamos o fluxo da água num rio desenhando as linhas de corrente. Esta nova abordagem, focada não no comportamento de uma solução em particular, mas em obter informação qualitativa sobre o comportamento global do sistema, revelou-se suficientemente poderosa para ter permitido a Poincaré a descoberta histórica do caos.

Espaço de fase do pêndulo: 1 grau de liberdade

No eixo horizontal é marcado o ângulo (posição) que o pêndulo faz com a vertical. O ângulo máximo é π, quando o pêndulo se encontra na sua posição mais alta, totalmente alinhado com a vertical. O ângulo é positivo quando o pêndulo está à direita do eixo e negativo quando está à esquerda. No eixo vertical, o ponto em cima do θ significa a primeira derivada em ordem ao tempo: A velocidade angular. Ângulo e velocidade angular são para o pêndulo as coordenadas tradicionais de posição e momento. As setas desenhadas representam a evolução do sistema no espaço de fases; O tempo não aparece explicitamente, mas já sabemos que as variáveis do espaço de fases têm uma dependência temporal. Como vemos, na imagem estão traçadas órbitas de diferentes cores que podemos identificar como 3 regimes distintos na dinâmica do pêndulo:

Retrato de fases do pêndulo simples.
Retrato de fase do pêndulo simples.
  • Órbitas verdes: Neste regime o pêndulo é largado com velocidade angular nula numa posição que faz um ângulo menor que π com a vertical. Como estamos a desprezar quaisquer atritos, a velocidade do pêndulo cresce até atingir um valor máximo quando θ = 0 e decresce a seguir até voltar a zero, quando atinge a elongação máxima do lado oposto, simétrica da inicial. Como podemos ver, neste regime as órbitas são fechadas (cada linha verde corresponde a uma dada altura inicial) o que podemos de imediato identificar com um movimento periódico. Repare que o pêndulo nunca chega a fazer um ângulo de π, pois não tem energia suficiente.
  • Órbitas vermelhas: Nas órbitas vermelhas a sua velocidade angular nunca se anula e θ varia de -π a π, num sentido ou noutro. Isto significa que a energia inicial, que é comunicada ao pêndulo, é suficiente para que este consiga subir até à altura máxima e continuar a girar a partir desse ponto. Estas órbitas correspondem a círculos completos sucessivamente descritos pelo pêndulo, e também são periódicas, embora a imagem não o sugira imediatamente (temos de pensar que -π e π correspondem à mesma posição e que, portanto, o retrato de fases deve ser visto como tendo o bordo esquerdo 'colado' ao bordo direito).
  • Órbita azul: A azul temos um regime fronteira, em que o pêndulo é lançado exactamente com a energia necessária para poder chegar ao ponto de altura máxima, que atinge com velocidade nula. Por isso, o tempo associado a este movimento fronteira é infinito.

Como vimos, é possível fazer uma descrição qualitativa da dinâmica global de um sistema, sem recorrer às soluções explícitas, através do seu retrato de fase. Para além das órbitas periódicas e dos equilíbrios que identificamos no retrato de fase do pêndulo, que outros tipos de comportamento qualitativo podemos observar em sistemas dinâmicos? Em baixo encontram-se alguns exemplos.

Foco estável no pêndulo amortecido

Pêndulo amortecido.
Pêndulo amortecido. Um pêndulo amortecido não é mais que um pêndulo simples a cuja equação acrescentamos um termo de amortecimento que dissipa a energia do sistema. No caso mais comum, este termo é proporcional à velocidade, modelando assim o atrito provocado pela resistência do ar, que tem esta dependência.
Retrato de fases do pêndulo amortecido
Foco estável. Por oposição ao pêndulo simples, em que o retrato de fase nos mostra órbitas fechadas ( periódicas ), o termo de amortecimento leva a que qualquer órbita tenda para o ponto (0,0), onde o pêndulo fica parado.

Outros exemplos de comportamento qualitativo na vizinhança de um ponto de equilíbrio

Em ambos os tipos de pêndulo que considerámos, o ponto (0,0) – posição Θ = 0 e velocidade também nula – é um ponto de equilíbrio do sistema: O estado do sistema não se altera se partir desta condição inicial. No entanto, o comportamento das soluções com condições iniciais próximas do equilíbrio é diferente nos dois casos:

  1. No caso do pêndulo sem atrito, as soluções próximas oscilam com amplitude constante em torno do ponto de equilíbrio, que se designa por centro.
  2. No caso do pêndulo com atrito, as soluções próximas tendem para o equilíbrio, oscilando com amplitudes cada vez menores. Um ponto de equilíbrio deste tipo chama-se um foco estável.

Os retratos de fase esboçados nas figuras representam outros tipos de comportamento possíveis na vizinhança de um ponto de equilíbrio.

Foco instável. Nodo Estável
Foco instável (esquerda) - Um foco instável é análogo ao foco estável, mas as órbitas são percorridas em sentido inverso, de modo que uma solução que comece perto do ponto de equilíbrio oscila com amplitudes cada vez maiores.
Nodo estável (direita) - Tal como no caso do foco estável, todas as órbitas na vizinhança de um nodo estável tendem para o ponto de equilíbrio, mas fazem-no sem oscilar.
 
Nodo instável Ponto de sela
Nodo instável (esquerda) - Um nodo instável é análogo ao nodo estável, mas as órbitas são percorridas em sentido inverso.
Ponto de sela (direita) - Quase todas as órbitas na vizinhança de um ponto sela se aproximam até uma distância mínima, que varia de órbita para órbita, após o que se afastam cada vez mais. As excepções são apenas quatro órbitas, que no exemplo da figura correspondem a 4 rectas no espaço de fase. Já encontrámos um exemplo deste tipo de comportamento no retrato de fases do pêndulo sem atrito, para as órbitas na vizinhança do ponto de equilíbrio (π,0), que corresponde a ter o pêndulo imóvel na posição de altura máxima. As quatro órbitas excepcionais são neste caso os quatro ramos da órbita azul que existem perto do ponto (-π,0)=(π,0).

Estes são apenas alguns exemplos de comportamento qualitativo retirado das equações que descrevem os sistemas mais simples, com 1 grau de liberdade, cujo espaço de fase tem dimensão 2 – i.e. o plano enquadrado pelas variáveis posição e velocidade. Nos retratos de fase de sistemas não lineares, cujo espaço de fases tenha dimensão superior a dois, a variedade e complexidade dos comportamentos que podemos encontrar é muito maior, como veremos.