Origem das instabilidades

Acredita-se que as flutuações que deram origem às estruturas de larga escala do Universo devem ter origem primordial, ou seja, estão associadas aos primeiros instantes após o Big-Bang. As teorias existentes para a formação de estrutura no Universo caem em duas categorias:

  • baseadas ou na amplificação de flutuações quânticas num campo escalar durante a inflação;
  • ou numa transição de fase com quebra de simetria no Universo primordial que dá origem à formação de defeitos topológicos.

Visto a partir do momento da criação, o Universo passa por uma sucessão de fases. As transições entre as primeiras dessas fases ocorrem quando o Universo é dominado por uma gravitação quântica, cujos contornos exactos se desconhecem, mas durante as quais se pensa que as interacções estão unificadas e são caracterizadas por um elevado grau de simetria. Essas transições implicam quebras de simetria e podem ter uma várias implicações importantes incluindo a formação de defeitos topológicos como, por exemplo, a formação de cordas cósmicas ou dar início a um período de inflação exponencial.


Inflação

Épocas desde o Big-Bang ao Universo moderno.
Épocas desde o Big-Bang ao Universo moderno.

No final do anos 70, mais concretamente em 1979, o modelo cosmológico que se impusera depois da descoberta de Penzias e Wilson em 1965 era o de um Universo em expansão a partir de um Big-Bang . No entanto, o modelo debatia-se com um conjunto de problemas que foram condensados por R. Dicke e P. J. Peebles num famoso artigo publicado a propósito do centenário do nascimento de Einstein. Os principais eram os problemas da causalidade, da planura e o chamado problema dos monopólos.

O problema da planura exprime-se de maneira clara introduzindo o parâmetro Ω = ρ/ρc, onde ρc é a densidade do modelo plano. Verifica-se que, sempre que a matéria exibe pressão positiva ou nula, a situação normal, Ω se afasta do valor 1 correspondente ao Universo plano. Ora, como as observações indicam valores actuais próximos da unidade, isso significa que no passado remoto, próximo da época quântica mais extrema, dita de Planck, o valor de Ω esteve numa vizinhança arbitrariamente pequena de 1. Isso significa restringir as condições iniciais do Universo de maneira insatisfatória.

Representação do cone de luz e do problema da causalidade
Representação do cone de luz e do problema da causalidade.

O problema da causalidade pode-se compreender a partir da representação esquemática de uma figura do cone de luz que representa o passado da nossa galáxia. Na figura, a direcção horizontal representa uma dimensão espacial, enquanto que a direcção vertical representa o tempo. Usando escalas convenientes para os eixos, as trajectórias da luz são dadas pelas rectas que fazem ângulos de 45 graus com os eixos. Assim, em cada ponto, intersectam-se duas dessas trajectórias que definem o que se chama um cone de luz. Em cada ponto pode-se distinguir uma região no passado desse ponto e outra no futuro, que são designadas por cone de luz passado e cone de luz futuro. O cone de luz do ponto que nos representa, aqui e agora, na figura intersecta no passado a superfície (linha horizontal) que corresponde à libertação da radiação cósmica de fundo no que se chama um horizonte. Este, por sua vez, contém dois horizontes mais pequenos definidos pela intersecção dos cones de luz (futuros) que emergem de uma linha que representa a singularidade inicial. Estes dois horizontes delimitam duas zonas que, no passado, nunca comunicaram entre si, pois uma influência mútua só poderia ter existido numa intersecção dos cones, o que não se verifica.

Representação do cone de luz.
Representação do cone de luz.

Isto decorre do facto da Relatividade proibir a propagação de interacções com velocidades superiores à da luz, o que as circunscreve às regiões delimitadas pelos cones. Não se percebe assim porque é que a radiação de fundo é tão homogénea. Em termos práticos isto significa que, tendo a radiação de fundo sido libertada quando o Universo tinha cerca de 300 000 anos, quaisquer zonas distanciadas mais de 2 graus (o que corresponde aproximadamente ao tamanho da Lua no céu) estão causalmente separadas.

O problema dos monopólos é um problema mais técnico e de certa maneira resultante de preconceitos teóricos. Dado que ao aproximarmo-nos da singularidade essencial, a energia do Universo se aproxima da escala limite de Planck, pensa-se que as interacções fundamentais se devem unificar. Assim, expandindo a partir de um estado unificado, deve haver uma transição de fase com quebra espontânea de simetria(s) no Universo, que segundo a teoria cria monopólos magnéticos (como se explica adiante). Esses monopólos contribuiriam para a densidade de energia do Universo de tal maneira que este deveria ser necessariamente fechado e em elevado grau, facto que não se observa.

Alan Guth.
Alan Guth.

Em 1981, A. Guth propôs que um campo escalar, envolvido numa transição de fase de primeira, a partir de um estado de grande unificação, poderia resolver todos estes problemas. Se ele ficasse «preso» num mínimo não nulo do seu potencial produziria o mesmo efeito repulsivo que uma constante cosmológica, originaria, na prática, uma pressão efectiva negativa e o Universo expandiria aceleradamente, ao invés do que sucede quando as pressões são positivas. Bastava que isso sucedesse durante um brevíssimo lapso de tempo (10-35 s), para que o tamanho do Universo aumentasse de um incrível factor (e60 vezes). Esta expansão acelerada que se designou por "inflação" torna o Universo plano (i.e. Ω = 1), dilui de maneira radical o número de monopólos magnéticos no Universo observável evitando que a elevada massa destes o encurve de maneira incompatível com as observações e amplifica de tal maneira as dimensões de uma região causalmente homogénea na vizinhança do Big-Bang que ela cobre toda a extensão do céu que observamos hoje.

Este mecanismo revelou aos cosmólogos que, sendo o processo de natureza quântica, as flutuações quânticas do campo escalar poderiam estar na origem das perturbações que estão, por sua vez, na base da formação de estrutura por instabilidade gravitacional. Ou seja, tornava-se assim possível relacionar a fase de expansão acelerada proposta por Guth com as flutuações da radiação de fundo e, subsequentemente, com a formação de estrutura. As flutuações quânticas do campo escalar responsável pela inflação – dito inflatão – escapam à erosão promovida pelos fotões durante a época de radiação porque durante a expansão acelerada algumas dessas flutuações crescem o suficiente para ultrapassar os limites da região cujos pontos estão causalmente relacionados, isto é, a região até onde um sinal de luz consegue chegar durante o tempo que decorre na expansão. Assim essas flutuações ficam fora desse horizonte, imunes ao efeito dos fotões até que, mais tarde, voltam a entrar na região causal. Isto acontece porque durante a inflação o horizonte que delimita a região causal permanece aproximadamente constante ou diminui mesmo, enquanto que após a inflação esse horizonte aumenta mais depressa do que as flutuações do campo. Como algumas das flutuações só voltam a entrar no horizonte no final da época de radiação, na altura da libertação da radiação cósmica de fundo, podem ser as sementes para a formação de estrutura de que se necessitava. Naturalmente que as flutuações com escalas tais que reentram no domínio causal antes do fim da época de radiação são apagadas pelo efeito abrasivo dos fotões.

Comparação entre o modelo inflacionário e o modelo padrão da cosmologia.
Comparação entre o modelo inflacionário e o modelo padrão da cosmologia.

A evolução das flutuações depende dos valores de três parâmetros cosmológicos:

  1. a constante de Hubble H0,
  2. a densidade de matéria no Universo Ω e a
  3. constante cosmológica Λ.

A inflação prevê que o Universo é “plano” e vai continuar a expandir-se para sempre, o que implica

Ω + Λ/H02 = 1.

As previsões dos modelos inflacionários são consistentes com o comportamento do espectro das anisotropias da radiação de fundo a escalas muito grandes e isso permite usá-lo para definir melhor o cenário do Universo primitivo.


Defeitos Topológicos

Os defeitos topológicos são configurações estáveis de matéria formada durante as transições de fase no Universo primordial. Como já se referiu, durante as primeiras fases do Universo as componentes materiais estão em estados físicos caracterizados por elevados graus de simetria e pensa-se que as interacções estarão unificadas. O arrefecimento do Universo, devido à expansão, promove as condições para que algumas dessas simetrias se quebrem – diz-se – espontaneamente. Isto acontece de maneira parecida ao que se passa com um lápis que, estando na vertical e apenas apoiado no seu bico afiado, cai ficando tombado sobre uma superfície plana e orientado em qualquer direcção. A simetria de rotação que existia em torno do eixo do lápis deixa de existir e, além disso, o ponto onde a ponta estava apoiada separa todas as possíveis posições do lápis tombado e diz-se um defeito topológico. (Um exemplo clássico de uma quebra de simetria é o das transições ferromagnéticas na teoria de Landau). De acordo com os tipos de simetrias que são quebradas podem formar-se vários tipos de defeitos topológicos, entre os quais paredes, cordas cósmicas, monopólos e texturas. O tipo de defeito formado é determinado pelas propriedades de simetria da matéria e pela natureza da transição de fase.

As paredes são objectos bidimensionais que se formam quando uma simetria discreta é quebrada durante uma transição de fase. Uma rede de paredes, divide efectivamente o Universo em várias “células”. Este tipo de defeito tem algumas propriedades muito peculiares, sendo uma delas que o campo gravitacional de uma parede é repulsivo em vez de atractivo.

Paredes estão associadas a modelos em que existe mais do que um mínimo.
Paredes estão associadas a modelos em que existe mais do que um mínimo.

Cordas cósmicas são objectos unidimensionais que se formam quando uma simetria axial ou cilíndrica é quebrada. São muito finas e podem-se estender ao longo do Universo visível.

Cordas cósmicas estão associadas a modelos nos quais um conjunto de mínimos não estão conectados.
Cordas cósmicas estão associadas a modelos nos quais um conjunto de mínimos não estão conectados.

Monopólos têm dimensão zero, ou seja, são pontuais, e formam-se quando uma simetria esférica é quebrada. Preve-se que sejam supermassivos e tenham carga magnética.

Monopólos
Monopólos

Texturas formam-se quando grupos de simetria mais complicados são quebrados. São defeitos topológicos deslocalizados e instáveis.

Exemplos de configurações de texturas em uma e duas dimensões.
Exemplos de configurações de texturas em uma e duas dimensões.

Sempre que exista a possibilidade de cordas cósmicas ou outros defeitos topológicos se formarem numa transição de fase cosmológica, eles formam-se de facto. Esta circunstância foi primeiramente apontada por Kibble e por isso, num contexto cosmológico, o processo da formação de defeitos ficou conhecido como o “mecanismo de Kibble”.

Um facto já referido a propósito da inflação é que os efeitos causais no Universo primitivo só se podem propagar à velocidade da luz c. Isto significa que num instante t, regiões do Universo separadas por mais do que uma distância d = ct não podem saber nada acerca uma da outra. Numa transição de fase com quebra de simetria, diferentes regiões do Universo irão cair em diferentes mínimos do potencial. Os defeitos topológicos são precisamente as “fronteiras” entre essas regiões correspondentes a diferentes mínimos e a sua formação é assim uma consequência inevitável da transição de fase

Mecanismo de Kibble para a formação de paredes.
Mecanismo de Kibble para a formação de paredes.

Por exemplo, numa teoria com dois mínimos discretos, regiões vizinhas separadas por ct tendem a cair em diferentes mínimos como mostra a figura. Separando estes mínimos existe uma parede.

De notar que, paredes e monopólos são cosmologicamente catastróficos, isto é, qualquer modelo cosmológico em que eles se formem irá evoluir num sentido que contradiz os factos observacionais e têm que ser postos de parte.

Por outro lado, as cordas cósmicas (e possivelmente as texturas também) são defeitos muito mais benignos e há cosmólogos que defendem que podem ser as “sementes” necessárias à formação das estruturas de larga-escala que observamos hoje em dia.

Formação de cordas cósmicas.
Formação de cordas cósmicas.

A investigação desta hipótese revela-se muito exigente do ponto de vista computacional para se fazerem previsões robustas, confrontáveis com os dados observacionais.

Como hipótese alternativa à inflação para produzir as flutuações seminais necessárias à formação de estrutura, as cordas cósmicas deparam-se com maiores dificuldades em produzir o tipo de anisotropias detectadas na radiação cósmica de fundo.