Reacção-difusão: Osciladores temporais e ondas químicas

Neste módulo vamos descrever um segundo exemplo de autoorganização, ainda no contexto de sistemas termodinâmicos fora do equilíbrio: o sistema de reacção-difusão. Este é um dos modelos de formação de padrões mais ricos, e, como veremos, pode ajudar-nos a perceber a origem das riscas dos tigres ...

A reacção de Belousov-Zhabotinsky, ou reacção de BZ, é uma reacção química que oscila entre dois estados. Pertence a uma classe de reacções, conhecidas por osciladores químicos não lineares, que não são dominadas pelo equilíbrio termodinâmico. Para além do interesse teórico deste tipo de sistemas, que juntamente com a convecção de Bénard desempenharam um papel central no estudo da formação de padrões em sistemas dissipativos, as oscilações químicas são importantes como modelos de reacções biológicas que ocorrem longe do equilíbrio.

Foi esta a motivação que levou à sua descoberta, em 1951, pelo bioquímico B. Belousov. Belousov estava interessado no estudo de um ciclo metabólico, o ciclo de Krebs ou ciclo do ácido cítrico, e descobriu que, numa solução de brometo de potássio, sulfato de cério e ácido cítrico em ácido sulfúrico diluído, a razão das concentrações de iões de cério Ce3+ e Ce4+, em vez de variar de maneira monótona, oscilava no tempo. A consequência destas oscilações de concentração é que, na reacção de BZ, quando os reagentes são bem misturados, observa-se uma mudança regular da cor da solução, de amarelo a transparente, uma e outra vez. A reacção oscila no tempo com um período bem definido. Belousov notou também que, se os reagentes não forem misturados, a reacção dá origem a padrões espaciais com a forma de ondas de cor amarela.

Reacção de BZ no caso em que os reagentes são bem misturados.
Reacção de BZ no caso em que os reagentes são bem misturados. A solução muda regularmente de cor com um período bem definido.

As várias tentativas de Belousov ao longo dos anos 50 para publicar este resultado foram todas rejeitadas. A questão não era apenas se a reacção oscilava, mas se oscilava pelo mecanismo proposto, isto é, se se tratava duma reacção química homogénea, sem gradientes espaciais ou partículas suspensas na solução. Já em 1920, A. Lodka tinha sugerido um modelo teórico que previa oscilações sustentadas em reacções químicas homogéneas, em determinadas condições idealizadas. Mas o trabalho de Lodka não teve qualquer impacto na comunidade dos químicos, que recusaram a ideia de oscilações químicas em reacções homogéneas por acreditarem que violava a Segunda Lei da Termodinâmica.

Nos anos 60, A. M. Zhabotinsky redescobriu a mesma sequência de reacções e confirmou a homogeneidade da reacção de Belousov. Também ele teve inicialmente alguma dificuldade em publicar os seus resultados, que chegou a enviar a Belousov com um pedido de comentários. Foi sobretudo a partir de 1968, depois da participação de Zhabotinsky numa conferência em Praga sobre osciladores biológicos e bioquímicos, que os resultados destes investigadores começaram a atrair a atenção de muitos cientistas, tanto no antigo bloco de Leste como no antigo bloco Ocidental. Em 1980, cinco cientistas soviéticos, incluindo Belousov e Zhabotinsky, receberam o prémio Lenine pelos seus trabalhos sobre a reacção de BZ, mas Belousov tinha morrido dez anos antes. Hoje podemos encontrar na internet muitas receitas de cocktail para reacções tipo BZ e podemos observar uma delas neste vídeo.

Ondas químicas

As reacções de BZ podem ser realizadas em caixas de Petri, onde, colocando finas camadas de reagentes, sem os misturar, formam-se intrincados padrões espaciais, cf. figura seguinte. Inicialmente surgem pequenas manchas em regiões diferentes, que se propagam numa série de anéis concêntricos (ondas em alvo) ou de espirais. As ondas desaparecem se a solução for agitada, mas reaparecem pouco depois e continuam até os reagentes serem consumidos. A reacção mantém-se indefinidamente se os reagentes forem introduzidos e os produtos retirados do sistema, de forma a manter as condições de não-equilíbrio. Num sistema fechado as oscilações desaparecem e o sistema estabiliza num estado de equilíbrio uniforme, de acordo com a Segunda Lei da Termodinâmica.

Padrões espaciais de uma reacção de BZ.
Padrões espaciais de uma reacção de BZ.

A reacção exibe a formação de padrões espaciais porque as oscilações em diferentes regiões do espaço não estão sincronizadas, excepto quando os reagentes são bem misturados. Quando não é assim, a mistura dá-se apenas devido à difusão das diferentes tipos de moléculas no meio. O padrão espacial observado resulta portanto da interacção da própria reacção com este processo de difusão.

Assim, este sistema químico homogéneo exibe autoorganização, não só temporal como também espacial. A simetria, o comprimento característico e o período das ondas são determinados pela dinâmica interna do sistema químico, i.e.: pelas taxas a que as moléculas reagem e se difundem no meio onde estão dissolvidas.

A chave para compreender a reacção de BZ é um processo chamado catálise, que consiste na aceleração da taxa da reacção pela acção de um catalizador, um composto químico que não é consumido durante a reacção. Quase todas as reacções bioquímicas nos seres vivos usam enzimas, proteínas naturais que actuam como catalizadores, e Belousov tentava precisamente modelar uma destas reacções quando descobriu as oscilações químicas.

A reacção de BZ produz o seu próprio catalizador: Um dos produtos actua como catalizador para acelerar a formação de mais produto. Este processo autocatalítico, a que vamos chamar A, é caracterizado por feedback positivo: À medida que se forma mais produto a taxa de reacção aumenta, como numa reacção nuclear. A reacção de BZ envolve dezenas de reacções químicas, mas o mecanismo responsável pelas oscilações pode ser compreendido se considerarmos apenas um segundo processo B, que compete com o processo A e impede o processo autocatalítico de continuar. A feedback positivo do processo A consome os reagentes rapidamente e a concentração dos produtos aumenta à mesma taxa. Um destes produtos é colorido e a solução toma essa cor. Quando os reagentes são consumidos, o processo A pára e o processo B começa a produzir um produto com uma cor diferente. Com o decorrer do tempo este processo também consome os reagentes e o processo autocatalítico recomeça. A existência do ciclo resulta do facto de cada um dos processos produzir alguns reagentes necessários ao outro. Os ciclos repetem-se, numa espécie de ciclo vicioso, enquanto o fluxo de reagentes e produtos se mantiver.

A redução da química complicada da reacção de BZ a um modelo simples que contem o essencial da dinâmica desta reacção é devida a Field, Körös e Noyes. Este modelo, chamado “Oregonator” por causa do lugar em que o trabalho foi desenvolvido, é uma equação diferencial não linear em dimensão três que exibe o famoso atractor de Rössler, onde os parâmetros são os valores dos fluxos de reagentes que forçam o sistema. Por isso, não será certamente surpresa saber que o “Oregonator”, e o sistema químico que ele modela, apresentem comportamentos muito diferentes em função desses parâmetros, ou seja, são descritos por um diagrama de bifurcação complexo que inclui regimes de comportamento caótico.

Dependência temporal das concentrações do Oregonator.
Dependência temporal das concentrações do Oregonator.

A bifurcação associada ao comportamento oscilatório ocorre quando a taxa de fluxo de reagentes atinge um certo limiar. Para valores inferiores, depois de um transiente oscilatório, o sistema atinge um estado de equilíbrio uniforme. Para valores superiores, o padrão temporal da reacção de BZ é descrito por um ciclo estável, que é atingido ao fim de um transiente para quaisquer valores das concentrações iniciais. Esta bifurcação foi estudada pelo matemático H. Hopf muito antes das oscilações químicas terem sido descobertas e é conhecida por bifurcação de Hopf.

Contudo, se as taxas aumentarem para além de um determinado limiar o padrão temporal muda abruptamente. O novo padrão corresponde a um pulso duplo na concentração dos reagentes: o ciclo inicial dá origem a outro ciclo, com o dobro do período. Esta bifurcação corresponde à bifurcação de duplicação de período da aplicação logística. Por isso, não será mais uma vez grande surpresa saber que, à medida que a taxa de fluxo aumenta, as duplicações de período sucedem-se e são observados padrões correspondentes a períodos 2, 4, 8 ...., e que, para valores ainda maiores dessa taxa, se observa comportamento caótico, com janelas de comportamento periódico.

Este comportamento da reacção de BZ, que reproduz o da aplicação logística, foi observado experimentalmente em 1982 por Simoyi, Wolf e Swinney. Este foi uma enorme surpresa para a comunidade científica da época, e um resultado muito excitante para os próprios autores, um dos quais compôs até um poema alusivo ao feito que ainda hoje se pode encontrar na internet. Ao fim e ao cabo, estávamos perante o primeiro exemplo de um sistema físico com muitas variáveis, as concentrações das cerca de 25 substâncias químicas que intervêm na reacção, cujo comportamento se pode modelar pelo de uma aplicação com apenas uma variável, é um exemplo experimental da universalidade da aplicação logística.

Simulações numéricas

A descrição matemática completa da reacção de BZ é demasiado complicada para que seja útil simulá-la directamente na versão espacial, mas existe uma simplificação ainda mais drástica do que o Oregonator, desenvolvida por Keener e Tyson, que, para além do comportamento periódico, pode exibir excitabilidade, um outro regime que a reacção BZ também pode assumir. Neste regime, o atractor é o equilíbrio, mas quando o sistema é afastado o suficiente desse equilíbrio, vai executar um movimento de grande amplitude, próximo do ciclo do regime periódico, até tender novamente para o equilíbrio. A semelhança deste comportamento com o de muitos sistemas vivos e a simplicidade deste tipo de modelos faz com que sejam utilizados em muitas simulações espaciais.

Simulação numérica de uma reacção BZ.Simulação numérica de uma reacção BZ.
Padrões espácio-temporais de uma reacção de BZ produzidos por simulação numérica.

Esta classe de modelos espaciais, a que se chama meios excitáveis, exibe o mesmo tipo de padrões observados na reacção de BZ. Cada ponto de um meio excitável pode mudar de estado quando o estímulo atinge um determinado limiar. Depois de excitado, relaxa para o estado inicial e, durante esse período, chamado período refractário, não pode ser excitado de novo. É o período refractário que permite a existência de oscilações e a organização de padrões espácio-temporais complexos.

Porque é que as simulações em meios excitáveis reproduzem os padrões espácio-temporais observados em reacções de BZ? O mecanismo de propagação das ondas químicas pode ser visto como o resultado da competição entre uma reacção autocatalítica e o processo de difusão que transporta os reagentes através do meio de reacção. A difusão das moléculas é aleatória e se não houver mistura dos reagentes, o processo de difusão é importante, especialmente em reacções autocatalíticas, onde a substituição dos reagentes depende da sua difusão. É exactamente o que acontece na vizinhança da frente de onda numa reacção de BZ. O transporte por difusão causa um período refractário na região atrás da frente de onda onde os reagentes foram consumidos pela reacção e não foram ainda substituídos por difusão.

A reacção de BZ é um caso particular do sistema de reacção-difusão, um dos sistemas genéricos de formação de padrões. O padrão de Turing, proposto na época em que a reacção de BZ foi descoberta, é outro caso particular do sistema de reacção-difusão.