O relógio de Newton
Lei da gravitação universal
Logo após a publicação em 1687 dos Philosophiae Naturalis Principia Mathematica,
a grande obra de Newton, as suas ideias e as suas técnicas difundiram-se
rapidamente e começaram a ser usadas na solução de diversos
problemas da astronomia. Sucesso após sucesso, a comunidade científica
dos sécs. XVIII e XIX ficou rendida à gravitação
Newtoniana. Mas o impacto da obra de Newton estendeu-se muito para além
da astronomia, a todas as áreas da física, e deu origem a uma
atitude optimista em relação à capacidade humana de, através
da matemática, entender o Universo, que funcionaria de acordo com
leis deterministas expressas por equações diferenciais como as
que Newton escreveu para o sistema solar, como um gigantesco mecanismo de relógio
cujas engrenagens eram leis físicas quantitativas simples. Depois de
Newton, a partir do final do séc. XVII, toda a comunidade científica
abraçou a nova forma de fazer ciência, assente em observar a natureza
e descrevê-la com equações.
No entanto, o próprio
Newton rapidamente reconheceu as dificuldades matemáticas que se
podiam encontrar numa equação diferencial. Não
é difícil resolver o chamado
problema dos dois corpos, o do movimento de um sistema de dois corpos
em
interacção gravítica, por exemplo, o Sol e um
planeta, ou um planeta e um satélite. Já sabemos que as
soluções foram encontradas pelo próprio Newton, e
incluem as órbitas elípticas descritas pelas leis de
Kepler, entre outras. Mas, se o
campo gravitacional produzido pelo Sol é suficientemente
predominante para que possamos desprezar a interacção
mútua dos planetas sem afectar muito os resultados, para obter
soluções muito precisas é necessário em
muitos casos considerar a influência dos planetas de maior
massa, como Júpiter. Assim, um
problema de gravitação é muitas vezes posto como
um problema a mais de 2 corpos. Mas as
equações de Newton escritas para 3, 4, ou mais corpos em
interacção não possuem as soluções
que surgem no problema de 2 corpos, suficientemente simples para
que possam ser descritas em termos de um pequeno número de
funções conhecidas. Como é que Newton e os
astrónomos, matemáticos e físicos que continuaram
o seu trabalho
resolveram este problema?
Para problemas como este, que são pequenas
perturbações de problemas com soluções
conhecidas, desenvolveram-se
técnicas que nos permitem chegar a soluções
aproximadas, mas com uma precisão em princípio
arbitrariamente grande, desde que tenhamos capacidade para calcular os
passos necessários para atingir uma certa precisão. O
conjunto destes métodos, que ainda hoje continuam a
desenvolver-se, chama-se teoria das perturbações, e
é com base nele que é possível obter a partir das
leis de Newton resultados relevantes para a dinâmica do sistema
solar. O êxito deste programa na astronomia foi tão grande
que hoje nos permite enviar a distâncias de milhões de
kilómetros missões espaciais que chegam ao seu destino
com erros
da ordem das dezenas de kilómetros.
Triunfos da gravitação newtoniana
- O cometa Halley
Cometa Halley.
- Em 1705, o astrónomo inglês Edmund
Halley usou a lei da gravitação para achar as órbitas
de cometas, às quais as leis de Kepler não
fazem referência, mas que têm que corresponder também
a soluções do problema de dois corpos, uma vez que
a lei de gravitação de Newton se aplica a todos
os corpos. Analisando essas soluções, Halley identificou
os cometas observados em 1531, 1607 e 1682 como pontos de uma
mesma órbita elíptica de grande excentricidade em
torno do Sol, ligeiramente perturbada pela presença dos
outros planetas, e que passa próximo da Terra de
76 em 76 anos. Com base neste cálculo, Halley previu
que o cometa voltaria a passar próximo da Terra
em 1758.
-
Morreu em 1742, não chegando a ver o dia no ano de 1758 em
que o cometa que foi baptizado com o seu nome apareceu de facto no
céu. Se pensarmos que os cometas, cuja aparição
perturbava a absoluta regularidade da ordem celeste, eram vistos como
mensageiros dos deuses e prenúncio de grandes eventos,
poderemos imaginar o impacto que terá tido o mostrar que afinal
eram mais uma manifestação dessa ordem, e que essa ordem
era comandada por uma equação.
- A descoberta de Neptuno
Descoberta de Neptuno
-
Até 1781 só eram conhecidos
os planetas até Saturno. Neste ano, o astrónomo
William Herschel, como por acaso, quando apontava o seu
telescópio para o céu, descobriu um novo objecto que se
movia relativamente às estrelas: tinha acabado de descobrir Urano.
Quando a comunidade de astrónomos soube deste novo planeta, quis
naturalmente calcular a sua órbita de acordo com as leis de
Newton e comprovar mais uma vez o preciso acordo com as
observações. No entanto, nos anos que se seguiram, Urano
pareceu comportar-se de maneira um pouco diferente das
previsões, mesmo levando em
conta as influências gravitacionais de Júpiter e Saturno.
O que se
observou foi que, até 1822, Urano parecia estar a
acelerar
na sua órbita, e, a partir dessa altura, o planeta
começou a atrasar-se em relação ao movimento
previsto. Foi então sugerido que as discrepâncias
observadas eram
causadas por um 8º planeta, com uma órbita para lá
de Urano e numa posição tal que a
atracção gravitacional deste planeta sobre Urano produzia
exactamente os efeitos observados (ver figura). Atraídos
por esta hipótese, 2 jovens
matemáticos a trabalharem independentemente, Le Verrier e John
Couch Adams, propuseram-se fazer o trabalho necessário
para transformar esta ideia numa conjectura científica, que
possa ser testada pelas observações: se é
verdade que os desvios que observamos em Urano são
causados por um 8º planeta, qual a órbita que este planeta
tem que ter de modo a produzir esses desvios? A solução
deste problema não foi fácil, pela dificuldade
técnica dos cálculos envolvidos, e porque era
necessário estabelecer hipóteses sobre a massa e a
distância ao Sol do planeta desconhecido. Os dois
matemáticos chegaram a previsões semelhantes e disseram
aos
astrónomos para onde deviam apontar os seus telescópios.
Surpresa das surpresas, ou nem tanto, o novo planeta foi então
imediatamente
descoberto e baptizado como Neptuno.
- O efeito Slingshot
Efeito Slingshot
- O desenho de missões espaciais é o mais moderno
triunfo da gravitação newtoniana. O Slingshot
é uma técnica usada pela NASA e pela ESA para deflectir
as trajectórias de naves espaciais sem gastar combustível.
A técnica em si é muito simples de perceber e assenta
em 2 princípios gerais da mecânica newtoniana: conservação
da energia e conservação do momento. Quando falamos
no sistema solar dizemos que é conservativo, isto é,
a energia é conservada. Quer isto dizer que o resultado
da interacção gravitacional entre dois corpos, por
exemplo Júpiter e uma missão espacial, mantém
a energia do sistema inalterada: a nave aproxima-se de Júpiter
e ganha velocidade (transforma energia potencial em energia cinética), mas como um Skater que desce de um half pipe e torna
a subir, a nave traça uma hipérbole e volta a transformar
a energia cinética que ganhou em energia potencial, quando
se afasta do planeta. Do ponto de vista de Júpiter,
num encontro próximo rápido, a velocidade que a
nave trazia antes de passar por si é a velocidade que a
nave leva ao afastar-se. No entanto, Júpiter não
está parado. O que o Sol vê, ver figura,
é que Júpiter, ao encurvar a trajectória da nave,
acelera-a, transferindo-lhe uma parte do seu momento: apesar do
momento linear do sistema Júpiter/nave ser conservado num encontro
rápido, há troca de momento entre os dois corpos. No caso mais
frequente, a nave aumenta de velocidade à custa da velocidade
do planeta. Como o momento é o produto da massa pela velocidade
e a massa do planeta é muito maior que a da nave,
essa perda de velocidade é desprezável. Por exemplo,
a Cassini, uma nave de 5700 kg lançada pela NASA
a 15 de Outubro de 1997 teve como destino Saturno. Para
lá chegar, a NASA levou a Cassini a fazer voos próximos
a Vénus(2), Terra e Júpiter.
A primeira passagem a Vénus deu-lhe uma velocidade
adicional de 7 km/s, a passagem pela Terra aumentou-lhe
a velocidade em 5.5 km/s, em Júpiter ganhou mais
2 km/s. Desta maneira, Cassini chegou a Saturno
a 1 de Julho de 2004. Feitas as contas a NASA poupou 75 toneladas
de combustível que de maneira alguma teria conseguido colocar
a bordo de uma missão que se quer o mais rápida
e o menos dispendiosa possível. Dividindo a massa da nave
( = 5700 kg) pela massa de Vénus ( = 4.869 x 1024
kg ), ficamos com uma ideia da ordem de
grandeza da velocidade que Vénus perdeu na interacção,
10-18 m/s. O segredo está precisamente na grande
massa dos planetas que lhes permite oferecer boleias às
nossas missões sem alterarem significativamente o seu curso.
A Física newtoniana foi responsável na
ciência pela idade do optimismo. A elegância das
leis de Newton e a qualidade das suas previsões deram origem a
uma grande confiança na possibilidade de vir a compreender e
controlar todos os fenómenos da
natureza com a mesma fiabilidade e precisão com que o sistema
solar parecia poder ser descrito. Um dos grandes expoentes deste
optimismo foi o físico
matemático francês Pierre Simon Laplace (1749-1827).
Grande matemático e mestre nas técnicas da teoria de
perturbações,
Laplace propôs-se a responder a uma pergunta que
persistia no seu tempo: será que o sistema solar é
estável? Isto é, a aparente ordem que observamos nos
céus é estável para tempos ilimitados, ou a
certa altura o batimento deste relógio cósmico pode vir a
falhar, levando a
acontecimentos catastróficos à escala do sistema solar?
Apesar de o problema ter continuado em aberto até muito depois
dos trabalhos de Laplace, os cálculos aproximados que foi capaz
de levar até uma grande precisão levaram-no a favorecer
uma resposta afirmativa ao problema da estabilidade, e a uma enorme
confiança na capacidade de
previsão da mecânica newtoniana, que traduziu na famosa
frase:
Podemos considerar o estado presente do
Universo como o efeito do seu passado e a causa do seu futuro. Se um
intelecto, num determinado momento, conhecesse todas as forças
que são a causa de movimento na natureza e a
posição de todos os corpos que a
constituem, e se além disso fosse suficientemente vasto para
submeter toda essa informação a análise,
então conseguiria, numa única fórmula, abarcar o
movimento dos maiores corpos do Universo, assim como do mais pequeno
átomo; para um tal intelecto, nada seria incerto, e tanto o
futuro como o passado estariam perante os seus olhos.
Apesar do optimismo, nem todos ficaram satisfeitos com
a resposta de Laplace a este problema, que não era final no sentido
em que dependia da possibilidade de poder desprezar o efeito de termos suficientemente
pequenos nas equações com que trabalhou. O futuro veio a dizer
que precisamente nesses termos o sistema solar escondia algo de imprevisível:
o caos.