Entrevista de Pedro Patrício e Patrícia Faísca
Tivemos opurtunidade de o entrevistar, por ocasião de uma visita recente a Lisboa, em Junho de 2005, a convite do Centro de Física Teórica e Computacional da Universidade de Lisboa. Antes da nossa conversa, Anthony Legget tinha apresentado duas palestras de âmbitos muito diferentes, intituladas "Testing the limits of quantum mechanics: Motivation, state of play, prospects" e "Introduction to high energy low temperature physics".
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Anthony J. Leggett ocupa actualmente a 'John D. and Catherine T. MacArthur Chair' e é Professor de Física no Center for Advanced Study da Universidade de Illinois (Estados Unidos da América). É membro do Departamento de Física desta Universidade desde 1983. É mundialmente conhecido como um especialista de física teórica das baixas temperaturas e o seu trabalho pioneiro sobre a superfluidez foi reconhecido com o Prémio Nobel da Física de 2003.
O Professor Leggett contribuiu de forma decisiva para a compreensão do hélio líquido e da sua transição para o estado superfluido. Em 1972, propôs uma teoria para descrever as fases superfluidas do hélio 3 (isótopo fermiónico do hélio 4), no ano em que estas fases foram descobertas. Criou novas linhas de investigação em física quântica de sistemas macroscópicos dissipativos e propôs o uso de sistemas condensados (superfluidos e supercondutores) para testar os fundamentos da mecânica quântica.
Anthony Leggett nasceu em Camberwell, Sul de Londres, em 1938. Terminou o bacharelato em Letras e Humanidades, na Universidade de Oxford, em 1959. Dois anos depois, obteve o bacharelato em Física, e em 1964 o doutoramento em Física Teórica, também em Oxford. Para além do Prémio Nobel da Física, foi galardoado com o Prémio Wolf, o Prémio John Bardeen, e o Prémio Paul Dirac, entre outros. O Professor Leggett é membro ou Fellow das mais prestigiadas sociedades científicas de todo o mundo.
P. — Depois de terminar um curso superior em estudos clássicos em Oxford, no Balliol College, decide começar um novo curso universitário em ciências. Porquê? E porque decide escolher Física?
R. — Provavelmente foi por não ter muita imaginação. Não me ocorreu tentar fazer uma carreira fora da vida académica. Naquela altura não tinha experiência em mais nada e a vida académica pareceu-me a escolha mais natural. Durante os meus estudos clássicos, concentrei-me sobretudo em estudar filosofia, que sempre me interessou muito, e que, num certo sentido, apreciava muito. Mas quando comecei a pensar seriamente em fazer uma carreira académica em filosofia apercebi-me que não era isso aquilo que eu queria fazer. Comecei a perguntar-me a mim próprio qual seria a razão exacta pela qual não o queria fazer e, mais uma vez, a minha falta de imaginação levou-me a pensar que essa razão nada teria que ver com a vida académica, e por isso, teria de estar relacionada com a própria filosofia. Quanto mais pensava nisso, mais sentia que essencialmente aquilo que diferenciava um bom ou mau trabalho em filosofia dependia muito do uso das palavras ou das frases mais adequadas e determinados exemplos específicos que se escolhessem... Pareceu-me que, de alguma forma, era tudo muito subjectivo. E onde me sinto realmente confortável é numa área de estudo onde, de certa forma, a Natureza nos diga se aquilo que fizemos está certo ou errado. Nessa altura, sabia muito pouco de física, mas tinha tido alguns relances: estudei algumas coisas nas fronteiras da física, por exemplo, lembro-me que durante os meus estudos clássicos tinha analisado o paradoxo de Zenão. Tinha uma vaga ideia sobre o que era a física e pareceu-me que seria a área onde estaria confortável e onde me sentiria mais feliz.
P. — Tinha 20 anos nessa altura...
R. — Sim, quando tive de fazer esta escolha tinha 20 anos.
P. — Sentiu que aquilo que aprendeu com os estudos clássicos teve utilidade na sua carreira científica?
R. — Sim, bastante. Num certo sentido, penso que tudo foi útil mas a filosofia foi-me particularmente útil. Penso que alguém que faça um curso de filosofia analítica – tenho consciência que a palavra filosofia tem significados diferentes em diferentes partes do mundo, mas na tradição anglo-saxónica a filosofia é uma ciência extremamente analítica –, ficará muito mais consciente das suposições que faz no seu trabalho. Por isso, considero que um dos benefícios que tive foi – e suspeito que muito mais do que muitos dos meus colegas em física que não tiveram este tipo de experiência – o de estar muito mais consciente das suposições implícitas que estou a fazer.
P. — Pensa que o seu treino anterior em estudos clássicos o influenciou nas suas pesquisas sobre as fundamentos conceptuais da mecânica quântica?
R. — Sim, certamente. Para dizer a verdade, nos primeiros anos em que fiz física eu não estive particularmente interessado nos fundamentos da mecânica quântica. Mas depois tive um colega na Universidade de Sussex, Brian Easlea, que tinha começado a sua carreira em física, mas que a pouco e pouco foi mudando para a história das ciências e os estudos sociais, que me deu umas lições, um mini-curso, no problema da medida em mecânica quântica. Creio que foi isso que me persuadiu que esses assuntos eram algo sobre o que valia a pena pensar. Foi provavelmente no fim dos anos 60 que eu comecei a pensar nestas questões, mas não consegui fazer nada durante os 10 anos seguintes. O meu primeiro artigo sobre os fundamentos da mecânica quântica foi em 1980.
P. — Não é habitual, no Reino Unido ou mesmo nos EUA, quando se ensina mecânica quântica, chamar a atenção para este tipo de problemas...
R. — Durante toda uma geração, eu diria, desde o fim dos anos 30 até talvez ao princípio dos anos 70, o assunto foi quase tabu nos países anglo-saxónicos. É interessante notar que nos países mediterrâneos da Europa este nunca foi um tema tabu. As pessoas estiveram sempre interessadas, mesmo nessa altura.
P. — Porque ficou em Oxford, e porque é que decidiu trabalhar na teoria de muitos corpos / estado sólido durante o seu doutoramento?
R. — As duas questões são muito simples. Estava mais ou menos convencido de que, por causa do meu percurso pouco comum / usual, seria muito difícil encontrar uma outra Universidade, para além da de Oxford, que me aceitasse como aluno de estudos pós-graduados. Porque é que optei por estudar estado sólido? Bem, em primeiro lugar, estava convencido, desde muito cedo, que queria fazer física teórica. Tive algum contacto com a física experimental durante a licenciatura (o bacharelato) mas não era particularmente bom e não gostei muito. Penso que nasci para ser um teórico. A questão seguinte tem que ver com quais eram naquela altura em Oxford as áreas fortes em física teórica. A resposta é: física nuclear a baixas energias, física das altas energias, e matéria condensada. Havia muito pouco de cosmologia, ou algo parecido. Eu tinha a impressão que – e isto foi-me confirmado por algumas pessoas – na física nuclear a baixas energias não se passava nada de muito espectacular. Em altas energias, o conselho que tive – estávamos no princípio de 1964 quando tive de fazer a escolha –, foi que a física das altas energias estava "parada / estagnada", e que nada de transcendente se passava. É claro que apenas uns meses mais tarde tivemos a "Eightfold Way". Penso que se tivesse escolhido no ano seguinte, provavelmente teria ido para física de partículas. Mas acabei na matéria condensada. Quanto à escolha do meu supervisor em particular, bom, ele foi o único que me aceitou como aluno.
P. — Quando é que se interessou pelo trabalho que foi reconhecido em 2003 com o Prémio Nobel, nomeadamente, sobre as fases do líquido superfluido 3He?
R. — O meu doutoramento teve 2 partes. Uma delas estava relacionada com a interacção de fonões no hélio-4 líquido, e portanto não tinha muito a ver com os trabalhos do Prémio Nobel. A segunda parte correspondia a um estudo no contexto da teoria de Fermi-Landau. Em 1961, quando comecei o doutoramento, a teoria de Fermi-Landau, publicada penso que em 1957, ainda não era largamente conhecida no Ocidente, essencialmente devido aos atrasos com as traduções. Eu conhecia-a graças a um dos muitos conselhos preciosos dados pelo meu supervisor Dirk ter Harr logo no inicio do meu doutoramento: saber russo o suficiente para poder ler os artigos originais. Foi um conselho muito útil. Pude por isso ler todos os artigos em russo sobre a teoria de Fermi-Landau assim que foram publicados. Fiquei de tal maneira impressionado com a teoria, que a segunda parte da minha tese de doutoramento foi sobre o diagrama de fases do hélio-3, hélio-4. Devemo-nos lembrar que, naquela altura, o diagrama de fases de misturas de hélio-3, hélio-4 tinha sido apenas explorado para temperaturas relativamente altas. Sabia-se que haveria uma separação de fases, mas não se sabia como ocorreria a baixas temperaturas. Em particular, não se sabia se uma pequena quantidade de hélio-3 seria estável em hélio-4 à temperatura zero, vice-versa ou ambas as coisas. Eu optei por estudar a região de hélio-3 do diagrama de fases e foquei-me em soluções diluídas de hélio-4 em hélio-3. Esta foi uma escolha má, porque basicamente a curva de separação de fases cruza o eixo nesse lado. O outro lado é muito mais interessante e alguns anos mais tarde Baym, Pethick and Pines fizeram um excelente trabalho sobre o assunto.
P. — Pode dizer-nos o que é a superfluidez?
R. — As experiências originais em superfluidez estavam relacionadas com a passagem de hélio-4 por capilares estreitos, na verdade por entre dois pratos paralelos. Descobriu-se que, acima da chamada temperatura lambda (à temperatura lambda o líquido entra na sua fase superfluida), o hélio fica preso entre estes dois pratos, com uma viscosidade que é qualitativamente semelhante à da água. A partir do momento em que se desce abaixo do ponto lambda, o hélio parece fluir sem fricção mensurável. Esta é a experiência original. De um ponto de vista moderno, devemos distinguir dois fenómenos diferentes. Um deles é chamado o efeito "Hess-Fairbank" ou o efeito de inércia de rotação não clássica. Coloca-se um vaso cilíndrico de hélio, ou talvez algo melhor como um anel ou um toro, em rotação – na mesa giratória de um gramofone antigo por exemplo –, muito lentamente. Acima da temperatura lambda o hélio comporta-se como a água, e fica em equilíbrio com o recipiente em rotação. Mas se o arrefecermos abaixo da temperatura lambda até perto do zero absoluto o que acontece é extraordinário. Descobre-se que o hélio deixa de estar em equilíbrio com o recipiente em rotação, e parece permanecer em repouso no referencial do laboratório. Hoje em dia acreditamos que isto não é exactamente assim. Se fizéssemos a experiência no Pólo Norte, o hélio faria uma rotação por dia. Por outras palavras é estacionário no referencial onde pára. Este fenómeno, e creio que é muito importante perceber isto, não pode ser consequência do desaparecimento da viscosidade. O desaparecimento da viscosidade só poderia impedir que o sistema ficasse em equilíbrio com as condições de fronteira. Mas, uma vez atingido o equilíbrio, não pode fazê-lo sair de lá. Isto é muito diferente, é um fenómeno termodinâmico de equilíbrio estável. A outra experiência à priori parece a mesma mas vista noutro referencial é na verdade muito diferente. Mais uma vez coloca-se um anulo em rotação, agora razoavelmente depressa e acima da temperatura lambda (o hélio roda rapidamente) e agora arrefece-se abaixo da temperatura lambda. Ocorre uma mudança muito pequena, dificilmente perceptível, e o líquido parece deixar de rodar no recipiente. Pára-se o recipiente, e o hélio continua a circular durante o tempo que quisermos olhar para ele. Este é um fenómeno meta estável. É muito fácil demonstrar que este não pode ser o estado de equilíbrio. Este é um fenómeno meta estável, ao contrário do outro, que é um fenómeno de equilíbrio. Estes são os dois ingredientes básicos da superfluidez.
P. — O que faz com que a fase superfluida do hélio-3 seja diferente e muito mais complexa (tanto de observar como de descrever) do que a do hélio-4?
R. — Dum certo ponto de vista, elas não são assim tão diferentes. O átomo de hélio-4 é formado por um número par de fermiões e por isso acredita-se que se comporta como um bosão. Pensa-se que a razão de base da superfluidez do hélio-4 se prende com a condensação de Bose-Einstein. Esta ideia foi sugerida por London, ainda em 1938, alguns meses depois das experiências originais, e corresponde aquilo em que a maior parte dos cientistas actualmente acredita. Já o hélio-3 tem um número impar de fermiões, e por isso não se pode comportar ele próprio como um bosão. O que pensamos que acontece com o hélio-3 está relacionado com o que acontece com os supercondutores: os fermiões perto da camada de Fermi formam pares de Cooper e são esses pares de Cooper que de certa maneira se comportam como bosões. Discute-se se se pode verdadeiramente pensar na formação de pares de Cooper como condensação de Bose-Einstein e a diferença é claramente que numa condensação não estruturada como a que acontece no hélio-4, o objecto que é condensado é um único átomo, o fenómeno começa numa escala muito pequena, comparável com a distância interatómica. No hélio-3, tal como nos electrões dos supercondutores, o complexo que origina este tipo de quasi-condensação de Bose-Einstein é um par de Cooper, o que corresponde a uma escala muito maior do que a distância entre átomos. Tipicamente, podemos ter milhões de outros átomos dentro de um par de Cooper. É um fenómeno extremamente colectivo.
P. — Qual é a importância do hélio-3 superfluido?
R. — Dum ponto de vista prático imediato o hélio-3 superfluido é provavelmente o sistema mais inútil jamais descoberto. No entanto, dum ponto de vista mais indirecto, é muito importante porque talvez seja o sistema físico mais sofisticado que compreendemos de uma forma quantitativa. Achamos que percebemos pelo menos uma grande parte do que se passa com o hélio-3 superfluido. Alguns dos fenómenos que acontecem são muito interessantes e quase únicos – alguns tem análogos em outros sistemas com aplicações práticas mais directas, por exemplo os supercondutores de altas temperaturas. Penso que é justo dizer que, ao tentar-mos compreender as propriedades do hélio-3 superfluido, geramos / criamos um grande "spin-off" para podermos compreender estes outros sistemas. Por exemplo, podemos aplicar algumas das ideias ali desenvolvidas na física de partículas ou no estudo do princípio do Universo...
P. — Depois do seu doutoramento, fez um post-doc nos EUA (1964). Nessa altura, qual era a diferença entre o ambiente científico de Oxford e o da Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign?
R. — Uma diferença era a dimensão das coisas. Na Universidade de Illinois eles tinham, e ainda têm, um grande departamento, talvez com 70 professores e 200 alunos de licenciatura. Não sei exactamente como era em Oxford, mas não era certamente comparável. Por isso, o nível de actividade era em geral muito maior, e de certa maneira, muito mais intenso. Por exemplo, se fossemos à Universidade por volta da meia-noite, podíamos encontrar algumas pessoas a trabalhar. Creio que não encontraríamos algo semelhante em Oxford, nessa altura. Em Oxford, os estudantes de doutoramento tendiam a trabalhar sozinhos, e não interagiam muito com os seus supervisores. Eu seguramente não interagi. Mas isto é muito típico de Oxford. Os estudantes eram deixados a si próprios, trabalhavam sózinhos durante 3 a 4 anos, e por fim submetiam as suas teses... Todos os professores pertenciam ao quadro, não havia o habitual trauma americano de conseguir uma posição definitiva. Por isso, o lugar parecia descontraído. Ao contrário, em Illinois, a maioria dos estudantes de doutoramento esperava que os seus supervisores se envolvessem no projecto, a um nível diário. Os professores mais novos não tinham uma posição permanente, estavam a tentar obtê-la, e por isso trabalhavam duramente para publicar o mais possível. Toda a atmosfera era bastante diferente...
P. — Essas diferenças estão aumentar ou a diminuir?
R. — Eu penso que os EUA não mudaram muito e a Grã-Bretanha mudou em alguma medida; Por exemplo, as posições permanentes foram abolidas. Dizem-me que esta medida não gerou grandes mudanças. Para mim faria uma grande diferença, mas aparentemente não faz para a maioria das pessoas...
P. — Durante o seu percurso teve a oportunidade de fazer investigação no mundo inteiro, desde os países ocidentais até ao Japão, ou mesmo o Gana. Quer comentar o impacto das diferenças culturais e científicas na ciência e na investigação científica feita em sítios tão diferentes?
R. — Penso que o impacto não é assim tão grande como se julga. Bom, obviamente, no Gana seria essencialmente impossível fazer investigação experimental e impossível fazer 90% de investigação teórica. E a razão muito simples é que para a investigação experimental não tinham equipamento, e para a investigação teórica não tinham revistas científicas. Na verdade, tinham-nas, mas estavam completamente desorganizadas... E por isso, quando estive no Gana, confesso que não fiz muita investigação, mas a que fiz foi deliberadamente em assuntos tão obscuros que não precisava de aprender ou conhecer a literatura existente. No Japão, é tudo muito organizado, vagamente como na Alemanha. Há um certo número de professores e cada um tem o seu laboratório de investigação. Estes laboratórios são, num certo sentido, domínios feudais, e basicamente o professor decide quem lá trabalha e, é claro que também acaba por ter alguma influência na carreira das pessoas depois de estas lá saírem. Por isso, existe uma forte tendência para as pessoas trabalharem na área do professor sénior, e não se aventurarem em problemas demasiado distantes, e em particular em ideias que o professor em questão não aprove. Até um certo ponto, há um certo grau de conformidade que é forçado pelo sistema. Mas tenho de admitir que estes efeitos são por vezes exagerados. Existia naquela altura e ainda existe hoje em dia muita e muito boa investigação independente feita no Japão.
P. — Pode falar-nos sobre outro dos seus interesses de investigação, nomeadamente sobre as teorias e as experiências que testam os limites da mecânica quântica? Qual é o estado da arte nesta área? Pensa que a próxima geração de experiências vai permitir observar as falhas da (nossa compreensão da) mecânica quântica?
R. — Sim, é algo que tenho tentado fazer desde há 25 anos. Publiquei o meu primeiro artigo sobre o assunto em 1980. Uma das sugestões explícitas que fiz foi a de observar os efeitos da sobreposição de diferentes estados de fluxo numa montagem com rf-SQUIDs. Se tivermos 2 anéis SQUID, temos 2 estados quase degenerados. Num deles a corrente flui no sentido directo com uma amplitude de alguns micro amperes, e no outro no sentido contrário. A ideia era a seguinte: poderemos efectivamente montar uma experiência para tentar observar efeitos de interferência quântica entre estes 2 estados? Naquela altura, a reacção que obtive da grande maioria das pessoas da comunidade ligada às medições quânticas foi a de que essa experiência não faria qualquer sentido já que era dado como certo e sabido que, a partir do momento em que se atinge o nível macroscópico, a descoerência vai aniquilar qualquer efeito quântico, e portanto não será possível observar interferência quântica. Tivemos de trabalhar duramente para lutar contra estas objecções e fizemos uma série de artigos muito técnicos sobre o assunto nos anos 80. Foi então que surgiu, como que vinda do nada, a computação quântica, algo que não tínhamos previsto de todo. A consequência disto foi que estas experiências que estavam a ser feitas com dificuldade por nunca terem tido um grande apoio financeiro, poderiam agora passar a ser financiadas no âmbito de projectos dentro do domínio da computação quântica. Nos últimos 5 anos, um número considerável destas experiências começaram a ser feitas, e o que é irónico é que os investigadores que apareceram nesta área nos anos 1990 queixam-se de que o grau de coerência nos factores quânticos destes SQUIDs é muito baixo, de apenas 300! Nos anos 80, a maior parte dos investigadores não acreditavam de todo nessa possibilidade...É de facto engraçado!
P. — Pode explicar-nos o fenómeno da descoerência quântica, e de que maneira este fenómeno pode comprometer o futuro da computação quântica?
R. — Bem, pode comprometer ou não, não se sabe... Parece-me que o raciocínio geral por trás do argumento que se usa sobre a descoerência está correcto, no sentido em que à medida que o sistema se complica, e que as interacções do sistema com a vizinhança vão sendo cada vez em maior número, então maior será o grau de descoerência a que o sistema está sujeito, e mais difícil será fazê-lo operar como um q-bit. O que talvez estes argumentos tendam a esquecer, ou pelo menos assim foi no passado, é que existe sempre alguma razão específica para obter descoerência: uma interacção com um grau de liberdade particular da vizinhança que caso seja possível isolar e eliminar, nos permite voltar novamente a pensar nos efeitos quânticos. E isso é exactamente o que estas experiências recentes têm feito. Tem-se pensado basicamente sobre os possíveis mecanismos que geram descoerência, e um por um, tenta-se eliminá-los. No final consegue-se um factor-q de 300, mesmo para a montagem original que propus, o que há apenas 6 anos era completamente inesperado! E em princípio não parece haver qualquer motivo para não conseguir ainda melhor. Portanto, pelo menos deste ponto de vista, penso que não há nenhuma razão para que um computador quântico não possa funcionar. Na verdade, mesmo um computador quântico feito hipoteticamente de SQUIDs poderia funcionar. Mas existem algumas subtilezas sobre as quais não saberemos muito, até começarmos efectivamente a construir um computador quântico operacional. Creio que existe uma classe de efeitos associados com as transições virtuais através da vizinhança que não foram convenientemente consideradas até agora, e que por definição não ocorrerão ao nível do q-bit, ou mesmo com 2 q-bits ou 3. Só quando formos para grandes números é que estes efeitos poderão vir a ter importância, podendo ser extremamente destrutivos. Na verdade, tenho neste momento um estudante que irá debruçar-se sobre esta questão. Pensamos que é algo que ainda não foi tratado convenientemente. Por isso, não sabemos ainda... Se me perguntassem qual seria o futuro da computação quântica, dentro de 10 ou 15 anos, então diria que seria parecido com o que se passa agora com a fusão nuclear térmica controlada. Noutras palavras, o princípio básico parece correcto, não existe absolutamente nenhuma razão teórica inultrapassável para que não seja possível...Mas no final, teremos de nos perguntar: vale a pena factorizar um número com 500 dígitos? É um número finito! Pode ser muito grande, mas não é infinito! Poder-se-á decidir que simplesmente não vale a pena fazê-lo.
P. — Há uma citação do matemático Arnol'd que diz que "os únicos cálculos computacionais que vale a pena fazer são aqueles que nos dão uma resposta surpreendente". Para si, qual o papel das simulações numéricas em física?
R. — Basicamente, penso que nos permitem implementar um grande número de ideias qualitativas que temos e para as quais gostaríamos de saber exactamente até que ponto são boas quantitativamente. No meu domínio de especialização, posso encontrar um bom exemplo no caso do hélio-4 líquido. Houve várias ideias extremamente frutuosas que foram surgindo de pessoas como Landau, Bogoliubov, e outros. Mas nunca tinha sido possível implementá-las de forma quantitativa recorrendo ao uso de técnicas analíticas conhecidas. Alguns investigadores – penso que isto foi revolucionário – como o meu colega David Ceperley, da Universidade de Illinois, mostraram-nos que se podiam utilizar técnicas computacionais para obter números, gerar expressões para o espectro de hélio-4 e compará-las com as experiências, por exemplo da densidade do fluido em função da temperatura e ver até que ponto é que se obtinha um bom acordo. Penso que se obtiveram resultados muito satisfatórios. E penso também que isto é algo que não poderia ter sido feito analiticamente.
P. — O que pensa da investigação interdisciplinar?
R. — Creio que a interdisciplinaridade é um conceito que foi demasiado vendido. Deixem-me explicar o que eu quero dizer com isto. Penso que a interdisciplinaridade não é um tipo de "molho" onde se misturam muitos ingredientes e que de alguma maneira o fazem melhorar. Se quisermos analisar um problema que requer o saber específico de um certo número de disciplinas, isso tornar-se-á obvio de uma forma automática. É o que acontece obviamente no domínio dos supercondutores a altas temperaturas. A partir do momento em que estes materiais apareceram, era claro que seriam precisos físicos, químicos, seriam necessários cientistas de materiais, etc., todos colaborando, e isso foi o que aconteceu. Ninguém teve que dizer que daria mais 500 milhões de dólares extra se conseguíssemos demonstrar que se tem interdisciplinaridade, surgiu como consequência natural dos acontecimentos. E essa é a forma natural para as coisas acontecerem. Pensem no problema: será preciso uma abordagem interdisciplinar para o resolver? Então deve-se tentar encontrar as pessoas certas para o fazer. Não vale a pena ser interdisciplinar por si só. Não faz sentido.
P. — Existem muitos físicos a trabalhar fora das tradicionais áreas da física (biologia, economia, e ciências sociais). O que pensa disto?
R. — Certamente é algo que vale a pena fazer, mas... Creio que o que é muito importante – tenho visto isto acontecer várias vezes na área da biofísica, porque é uma grande tentação... Se alguém vem por exemplo da área da mecânica estatística, tenta encontrar no domínio da biologia um problema que parece ser resolúvel com o tipo de técnicas utilizadas em mecânica estatística. Óptimo, resolve-se o problema, publicam-se vários artigos sobre o assunto, e depois descobre-se que os biólogos não estão simplesmente interessados naquele trabalho. Não parece ser um problema importante. Portanto, creio que é necessário, para alguém que queira entrar num novo ramo da ciência, falar com os investigadores que estão nessa área há já alguns anos, e que têm alguma intuição para saber quais são os problemas mais significativos. Provavelmente, não serão o tipo de problemas para os quais se poderão utilizar os métodos habituais da física. No entanto, pode ser que se tenha algum tipo genérico de conhecimento de base, que nos permita olhar para estes problemas de uma forma diferente.
P. — Do seu ponto de vista, quais são as grandes áreas da investigação científica hoje em dia?
R. — Esta pergunta é difícil… Em física, penso que a cosmologia, pela sua própria natureza, é claramente, e sempre foi uma área de fronteira. Certamente, esta é uma área de fronteira fascinante. Também diria que em algumas áreas da física das partículas se está mais ou menos por definição nas fronteiras daquilo que se sabe ou não se sabe. Mas também devo referir a teoria da matéria condensada. Creio que na área da física a baixas temperaturas ou na física da matéria condensada, os desafios são um pouco diferentes, e estão relacionados com a descoberta de novos tipos de fases organizadas, etc. Fomos muitas vezes bem sucedidos ao fazê-lo. É verdade que ninguém previu o hélio superfluido, ninguém previu o efeito de Hall quântico. No entanto, previu-se o hélio-3 superfluido, pelo menos até um certo ponto... Existem outros casos, deixem-me pensar... Creio que não houve nada de tão qualitativamente novo e que tivesse sido predito com tanta antecedência como o laser. Essa foi uma predição espectacular de algo que nunca tinha ocorrido, que ninguém tinha observado na Natureza. Penso que nunca fomos bem sucedidos em descobrir o que quer que fosse aos apalpões, tropeçando no escuro. Penso que o desafio será tentar pensar enfaticamente onde se poderão descobrir novos tipos de comportamento qualitativos. Tenho a certeza que se encontram por aí, algures... Isto no que diz respeito à física. Fora da física, é claro que há muitas áreas, biologia, psicologia, etc. Vejo com particular interesse os estudos do cérebro que tentam, de certo modo, unificar princípios físicos e biológicos. Escusado será dizer: estes estudos podem ter uma importância enorme na nossa vida do dia-a-dia. Certamente é uma área científica de extrema importância.
P. — Diz-se frequentemente que a biologia é a ciência do futuro...
R. — Eu diria que a nossa compreensão do funcionamento do cérebro hoje não é certamente melhor, na verdade é provavelmente pior, do que foi a nossa compreensão da matéria a um nível atómico no final do século XIX. Portanto, parece-me perfeitamente concebível que o século XXI traga a esse problema o mesmo tipo de grande revolução a que assistimos na física do século XX... E o desafio é no mínimo tão grande... Na verdade, acrescentaria ainda algo que provavelmente vos vai chocar: eu penso que não será nenhuma desonra para os físicos estudar o que chamamos fenómenos paranormais. Associados aos fenómenos paranormais há uma variedade de coisas que vão desde as experiências onde se tentam adivinhar cartas até às especulações sobre a vida para além da morte, etc. É óbvio que em muitas destas áreas há um grande charlatanismo, ilusões pessoais, etc., mas isso não quer dizer que não haja nada por detrás. Temos de recordar que, no século XV, havia muitas reflexões sobre o que hoje se conhece como alquimia. A maior parte era um disparate, mas por detrás de muitos trabalhos revelou-se o coração do que é agora a química. Não considero por isso inconcebível que alguns dos fenómenos que hoje tratamos como ficção, completamente paranormais, se revelem como tendo uma verdadeira base científica. Em particular, os fenómenos que excluímos não por causa do primeiro princípio da termodinâmica, mas por causa do segundo princípio...
P. — ... Numa entrevista recente, de Gennes também se mostrou apaixonado pelas neurociências.
R. — Creio que é quase única porque combina uma extrema e imediata relevância humana com um grande e importante desafio científico.
P. — Na última década, na Europa, os interesses dos estudantes têm-se afastado das ciências duras, e em particular da física. Considera que este afastamento é um problema? Passa-se algo semelhante nos EUA?
R. — Sim, temos seguramente problemas semelhantes nos EUA. Eu diria que na Universidade de Illinois, metade dos alunos termina com notas muito fracas. Uma grande parte destes alunos usa a física como uma via para obter um diploma em ciências computacionais. Portanto, temos certamente este problema. Pessoalmente, eu não me sinto tão preocupado como alguns dos meus colegas, porque de certo modo penso que é preferível ter um(a) grupo / comunidade de físicos pequeno(a), mas onde todos se sintam motivados, do que ter um grande comunidade onde a grande maioria não está motivada e não é muito boa. Por isso, não me sinto tão desiludido como alguns dos meus colegas. Quero dizer, se olharmos para isto de um ponto de vista puramente material, então claro, se não há estudantes, não há financiamento, investigação, etc. Mas mesmo assim, isso não é bem verdade, porque a maior parte do nosso financiamento não vem do estado.
P. — Considera que as actividades de divulgação podem ter um papel importante para reverterem esta tendência?
R. — Nós temos muitas actividades de divulgação em Illinois, temos um "camião da física", que visita regularmente um certo número de escolas, etc. Não sei exactamente quantas pessoas / horas por ano são despendidas nestas actividades, ultrapassa provavelmente os milhares. Diria que se esse esforço trouxer uma ou duas pessoas de qualidade por ano, que de outra maneira não estariam interessados em física, então talvez valha a pena. Penso que não interessa muito trazer dúzias e dúzias de pessoas... Eu disse que são dispendidas milhares de pessoas / horas, mas na sua maioria de estudantes universitários, que aprendem bastante nestas actividades: não são horas perdidas...
P. — Pode dizer-nos qual é o seu livro de divulgação preferido?
R. — Penso que existem dois ou três livros muito bons, têm saído muitos livros nos últimos 10 anos sobre os problemas conceptuais da mecânica quântica. E podem ser classificados desde muito bons até extremamente maus. Lembro-me de dois que considero especialmente bons, que recomendaria a qualquer pessoa que queira saber um pouco mais sobre este assunto. Um deles foi escrito por Nick Herbert. Já tem alguns anos, é de 1986 penso eu, e chama-se "Quantum reality". É um livro muito bom. Não é sensacionalista, e está escrito de uma forma acessível para qualquer pessoa interessada. Um segundo livro dentro da mesma linha é o mais recente de Gerard Milburn, que se chama "The Feynamn processor: quantum entaglement and the computing revolution", que trata especificamente da computação quântica. Mais uma vez, é um livro muito bom, embora já exija bastante do leitor. Existe uma citação conhecida que Stephen Hawking atribui a um dos seus editores: "cada equação que se escreve num livro diminui as suas vendas para metade". É obviamente uma piada, mas extremamente séria. Gerard Milburn não escreve efectivamente uma única equação no seu livro, mas depreende que o leitor saiba que (-1)^0 é igual a 1. Creio que quem sabe isso não se importaria de ver algumas equações. Em todo o caso, penso que o livro é muito bom.
P. — E quais são os seus livros de física preferidos?
R. — Deixem-me pensar. Basicamente tendem a ser os livros com que eu próprio aprendi. Por exemplo na mecânica quântica, gosto bastante do Landau e Lifshitz. Em termodinâmica ainda uso o Zemansky. Mas mais uma vez, porque foram os livros com que eu próprio aprendi. Não quer dizer que sejam melhores do que muitos outros. Continuando, em mecânica clássica fui habituado ao Goldstein. Na verdade existem outros excelentes livros. O Kibble é um livro bom em mecânica clássica. Outro livro que gosto muito, mas suponho que esteja já algo desactualizado: "Gravitation and cosmology" do Steven Winberg. Acho-o muito bom. Penso que consegue dar a ênfase certa na física que sai de todo o formalismo matemático.
P. — E o que acha dos artigos de divulgação da ciência dos jornais e revistas, etc.?
R. — Creio que existe de tudo um pouco. Com uma única excepção, que é o Daily Telegraph. Não acho o jornalismo inglês particularmente bom. Nos EUA, o New York Times tenta fazer um trabalho sério. Ás vezes têm pontos de vista que considero um pouco estranhos nalgumas coisas, mas parecem pessoas sérias. Acho que há muito bons jornalistas científicos. Particularmente, os profissionais que escrevem para a Nature ou para o New York Times. Mas também há muitos outros que não são muito bons.
P. — O que lhe parece preferível: "nenhuma notícia são boas notícias" ou "qualquer publicidade é uma boa publicidade"?
R. — Penso que depende muito das áreas de que se está a falar. Por exemplo, se existe um novo conjunto de observações de raios cósmicos, de satélites, etc., que supostamente nos dão informações sobre o princípio do Universo, e se o artigo de divulgação contem alguns erros, isso não causará nenhuma catástrofe e os erros poderão ser corrigidos mais tarde ou mais cedo. Ninguém morrerá por causa disso. Mas se estivermos a lidar com assuntos como a energia nuclear, ou os alimentos transgénicos, coisas desse género, então penso que se deve ser muito mais cuidadoso. Uma palavra errada não matará ninguém mas poderá ter grandes consequências a nível económico, etc.
P. — Há um provérbio chinês que diz: se ouves, esqucerás; se vês, lembrar-te-ás; se fizeres, compreenderás. Na investigação, faz-se seguramente. Neste contexto, qual o lugar do ensino?
R. — Claramente que, pelo menos a um nível superior, o ensino não pode substituir a investigação feita pelo aluno. Diria que o papel do ensino é simplesmente abrir os olhos a um mais vasto espectro de coisas que podem ser possivelmente relevantes, a um conjunto diferente de questões, às quais não estávamos habituados. Pessoalmente, quando comecei o meu percurso de estudante em Oxford, a ideia de que um aluno tinha de ser exposto a aulas de física era ainda muito recente. Na verdade, penso que frequentei o primeiro ano em que tivemos de fazer exames escritos. Havia disciplinas anteriormente, mas nunca tinha havido exames, ou eram completamente opcionais. A julgar pelo que se seguiu, não tenho a certeza que tenha sido uma boa ideia introduzir os exames. O problema, particularmente em Inglaterra, era que se não se fizessem exames, então os estudantes sentar-se-iam num canto, concentrando-se apenas na sua área muito específica durante 3 ou 4 anos, não fazendo mais nada para além disso. No contexto inglês, as disciplinas, as aulas e o esforço para passar os exames têm de facto um papel importante. Nos EUA, bom, este sistema iria acabar por chegar... Talvez não faça muito mal expor os alunos desta maneira. No final e apesar de tudo, o diploma do ensino superior tem de passar por um projecto / tese final.
P. — À medida que a ciência se torna cada vez mais especializada é difícil para os alunos obterem uma compreensão razoável dum tópico de investigação específico antes de saírem da Universidade. Qual será o melhor treino para os futuros cientistas (por exemplo físicos): ainda uma educação mais generalista (ciências e artes), ou uma especialização rápida (matemática e física)?
R. — Este tem sido um debate que temos tido nos EUA. Sinto que o sistema actual da América do Norte está essencialmente correcto. Durante a licenciatura, um grande número de pessoas passam 50 por cento do seu tempo a estudar física, e outros 50 por cento e estudar outras coisas: literatura, história etc. Creio que não é um mau sistema. No que diz respeito à física, saber exactamente o quão especializado se deve ser... Esse é o debate que temos tido na Universidade de Illinois. Obviamente quem quiser ter um diploma em física tem que ter um grau de competência decente em assuntos básicos: termodinâmica, mecânica estatística, electromagnetismo, mecânica quântica. Isso é claro. Mas depois disso, a questão é mais complicada. A proposta que foi agora aprovada, para meu desapontamento, na Universidade de Illinois, foi a de que os estudantes possam ter um diploma em física inteiramente à base de disciplinas genéricas formais, sem nunca terem de olhar para a física numa área particular, com profundidade. Acho que foi uma ideia desastrosa e opus-me a ela na altura em que surgiu. Não interessa que o diploma universitário abranja todos os domínios da física. Mas penso que é importante para os estudantes não fazerem apenas disciplinas básicas e muito abstractas, cursos sobre a mecânica quântica, a teoria electromagnética, a mecânica estatística, etc., mas que possam passar algum tempo pelo menos a tentar aplicar estas ideias numa área específica da física. Estava a favor da proposta que deveriam fazer uma disciplina em física das partículas ou em biofísica, etc... Deveriam ter alguma área concreta para aplicar as ideias de base. Aparentemente, esta não foi a visão da maioria.
P. — Para além do reconhecimento (dos colegas e do público) de um trabalho de investigação importante, quais são os benefícios do ter ganho o Prémio Nobel? Quais as desvantagens (se existirem algumas)?
R. — Bem, penso que um dos benefícios foi o valor do prémio em si, que é muito substancial. Infelizmente nos EUA está sujeito a impostos. Para além disso, recebem-se muitos convites, oportunidades para ir a lugares que de outra maneira nunca se visitaria. Ainda mais interessante, tem-se oportunidades para ficar envolvido em certos tipos de exercícios intelectuais que de outra maneira não se teria. Convidaram-me por exemplo para fazer parte de um Simpósio na Universidade de Notre-Dame, que foi organizado em torno de uma determinada peça de Tom Stoppard, chamada "Arcadia". A peça tem um fundo científico, e foi um desafio pensar numa palestra que não fosse trivial, e ao mesmo tempo relacionada com o tema da peça. Às vezes, também sou convidado para dar colóquios para audiências de estudantes de liceus e professores. Tive alguns convites deste tipo, mas não tantos quanto isso. Desvantagens: recebo demasiados convites. Não posso simplesmente responder a todos. Por algum motivo, o público em geral parece considerar os premiados com o Nobel como alguém que é especialista em tudo. Pergunta-me muitas coisas. Por exemplo, de alguém em Singapura que desenhou ou pensa que desenhou um novo tipo de motor electromagnético seja lá para o que for, e que quer a minha opinião... Na verdade, recebo muito correio inútil.
P. — Se voltasse a 1960, e estivesse a acabar o seu diploma em estudos clássicos em Oxford, voltaria a fazer um curso superior em física?
R. — Possivelmente, mas penso que, sabendo o que sei hoje, faria mais facilmente algo em neuropsiquiatria. Creio verdadeiramente que no século XXI este será considerado o domínio da ciência realmente fascinante. A física teve progressos recentes substanciais, mas não será olhada com o mesmo grau de fascínio. A neuropsiquiatria será muito mais útil.