O que têm em comum um fogo florestal e a magnetização do ferro? Quando se propagam os fogos florestais, as epidemias ou os rumores? O que resta duma floresta depois de um incêndio? Parece um floco de neve?
Um modelo matemático simples, o modelo de percolação, permite responder a estas perguntas e introduzir alguns conceitos fundamentais da Física dos Sistema Complexos. Para tal vamos recorrer a simulações para obter alguns resultados numéricos e pelo caminho vamos encontrar uma ou duas surpresas.
A Teoria da Percolação foi proposta pelos matemáticos Broadbent e Hammersly em 1957 para estudar a propagação de fluidos em meios desordenados. Nestes meios (por exemplo, rochas porosas) a propagação dos fluidos ocorre de uma forma não linear. De facto, existem dois regimes bem definidos, a propagação e a extinção, separados por uma transição brusca - a transição de percolação.
A generalidade deste modelo permite estudar uma variedade de processos com aplicações práticas, desde a recuperação terciária de petróleo à propagação de fogos florestais.
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Usamos um applet (à direita) para introduzir o modelo de percolação de sítios. Começamos por dividir a janela (quadrada) do applet em quadrados mais pequenos, formando uma grelha ou rede regular. A caixa no canto superior direito permite escolher o número destes quadrados L×L, ou seja o tamanho do sistema.
O applet pinta cada um dos quadrados vermelho com probabilidade, p, fixada pela introdução um número entre 0 e 1, na caixa prob: no menu do lado direito. Para p = 1 todos os quadrados são pintados enquanto para p = 0 os quadrados ficam em branco. Para p entre 0 e 1 o applet gera, para cada um dos quadrados, um número aleatório, x, neste intervalo. Se o número for menor do que p , x < p, o quadrado é pintado e no caso contrário, x > p, o quadrado fica em branco.
À direita pode ver os resultados obtidos para dois sistemas com tamanhos, 6×6 e 120×120, e com a mesma probabilidade, p = 1/2. No primeiro caso, foram pintados 18 quadrados, exactamente metade, a configuração mais provável para a probabilidade escolhida. O applet identifica e mede o tamanho dos agregados - conjuntos de quadrados pintados com vizinhos também pintados - e pinta a azul o agregado principal, o agregado com o maior número de quadrados.
Obtenha resultados semelhantes introduzindo 1 na caixa número total de configurações e premindo go. Observe que para o sistema maior, 120×120, a estrutura do agregado azul pode ser bastante complexa. Como veremos mais à frente,o tamanho do sistema é fundamental para definir as suas propriedades.
Nota: Depois de modificar os parâmetros no menu à direita, prima enter, antes de correr a simulação.
Centremos agora a atenção no agregado principal. Se este ligar dois lados opostos do sistema, isto é se o agregado principal se estender à escala do sistema, dizemos que o sistema percolou. Quando isto acontece, o applet pinta o agregado principal de verde, assinalando a percolação, figura à direita.
A pergunta que se põe é a seguinte: Dada a probabilidade p, de pintar cada um dos quadrados, qual é a probabilidade de percolação? Como é que esta probabilidade depende do tamanho do sistema? Vamos usar o modelo para responder a estas perguntas.
Utilizando o applet podemos testar a nossa intuição. Por um lado parece evidente que para p pequeno, poucos quadrados são pintados e estes são essencialmente ilhas desconexas, pelo que é difícil o sistema percolar. Quando p = 0, nenhum quadrado é pintado e a probabilidade de percolação é 0. No limite oposto, quando p = 1, todos os quadrados são pintados e o sistema percola sempre. Parece evidente que quando p cresce, cresce também a probabilidade de percolação. Será assim tão simples?
Comecemos por analisar o sistema mais pequeno, 2×2. Neste caso é fácil encontrar uma expressão analítica para a probabilidade de percolação: p2(2 - p2). Esta é obtida somando as probabilidade de todas as configurações que correspondem ao sistema percolado. No entanto, para sistemas grandes não é possível escrever uma expressão exacta uma vez que é praticamente impossível somar as probabilidades do enorme número de configurações que correspondem ao sistema percolado.
É aqui que o applet joga um papel essencial.
Vamos testar a expressão obtida para a probabilidade de percolação do sistema 2×2. Escolha, para este sistema, prob: 0.3, número total de configurações: 50 e prima go. O applet gera 50 configurações (pode vê-las a piscar) e conta, para o p escolhido, quantas percolaram. Em stat: fica registada a razão entre o número de configurações que percolaram e o número total de configurações. O que observa?
Para p = 0.3, o valor registado em stat deve estar próximo de 0.1719, obtido usando a expressão p2(2 - p2). Na verdade, o valor simulado aproxima-se do valor exacto à medida que o número de configurações, sobre as quais se calcula a fracção de configurações percoladas, aumenta. Carregue em plot e verá aparecer um gráfico com um ponto e uma curva azul. No eixo horizontal está marcada a probabilidade p e no eixo vertical está marcada a probabilidade de percolação. O ponto azul corresponde ao ponto calculado estocasticamente, usando o applet, e a curva corresponde à expressão analítica para a probabilidade de percolação do sistema 2×2, que escrevemos acima. Repare que no exemplo da figura o ponto não está muito longe da curva mas também não está precisamente em cima dela, porquê?
A situação é análoga ao lançamento de uma moeda. Sabemos que a probabilidade de obter cara ou coroa, em cada lançamento, é 1/2. Contudo, a estatística de 3 lançamentos é inconclusiva: pode sair cara 3 vezes, ou coroa 3 vezes ou, mais frequentemente uma razão de 1/3 ou 2/3 entre o número de vezes que sai um dos lados da moeda e o número total de lançamentos. Em 50 lançamentos observamos que aquela razão está muito mais próxima de 1/2. No limite, para uma infinidade de lançamentos, a razão é exactamente 1/2. É este o significado de probabilidade.
Pode agora preencher a curva com pontos. Prima auto no applet para incrementar p automaticamente. Premindo plot verifique que foram calculados vários pontos ao longo da curva. Experimente correr o applet com um número total de configurações pequeno, por exemplo 20, e com outro muito maior, 1000. Observa diferenças entre os resultados das duas experiências?
Nota: A simulação pode ser acelerada introduzindo um número mais pequeno em pause:.
O que acontece quando o tamanho do sistema aumenta? Experimente correr de novo o applet na opção auto, mas agora para sistemas de tamanhos diferentes. O que acontece à forma do gráfico à medida que L aumenta?
Repare como a curva fica cada vez mais estreita, com um declive cada vez mais acentuado. Como as figuras acima mostram, para L = 120, a curva assemelha-se a um degrau. No limite, quando L = ∞ é este degrau, a função de Heaviside, que descreve a probabilidade de percolação em função de p: 0 para p < pc e 1 para p > pc.
Resumindo, para sistemas pequenos, aumentando p aumenta a probabilidade de percolação uma vez que aumenta a probabilidade de existir um ‘caminho’ de quadrados pintados que liga dois lados opostos do sistema. No limite, quando o sistema é infinito, existe uma probabilidade mágica pc, chamada probabilidade crítica ou limiar de percolação, abaixo da qual o sistema nunca percola, e acima da qual o sistema percola sempre. A transição de percolação pode ser vista como uma transição de fase, análoga às transições de fase térmicas, onde a temperatura crítica separa regiões de estabilidade de duas fases diferentes.
Pretendemos agora, recorrendo ao applet, estimar o limiar de percolação, pc. Como podemos ver no gráfico acima, é claro que pc está algures entre 0.55 e 0.6. No entanto, não é fácil sermos mais precisos. Na verdade estamos à procura de um valor que só está bem definido quando L = ∞, sistema que não é possível simular.
Apesar de o applet só simular sistemas com tamanhos até L = 120, podemos calcular, para cada p, a probabilidade de percolação como função do tamanho do sistema e estimar a probabilidade de percolação no limite L = ∞, por extrapolação. Recordemos que, neste limite, esta probabilidade é 0 ou 1 para p respectivamente abaixo ou acima de pc. Seleccione no applet, no menu à direita, a opção extrapolar. Em seguida escolha p e prima go. O applet gera várias configurações para sistemas com tamanhos diferentes. Para cada L, calcula a probabilidade de percolação e constrói um gráfico como o das figuras acima: o eixo horizontal representa o tamanho do sistema e o eixo vertical a probabilidade de percolação. Repare na escolha conveniente das unidades no eixo horizontal: quando 4/L = 0 o tamanho do sistema é L = ∞ e quando 4/L = 1 o tamanho do sistema é L = 4. Usando estes resultados obtemos uma estimativa de pc. Na figura da esquerda escolhemos p = 0.55 e é claro que para L = ∞ a probabilidade de percolação é 0; para p = 0.6 a probabilidade de percolação parece tender para 1 quando L aumenta; estes resultados sugerem que pc está algures entre aqueles dois valores.
Procure fazer uma estimativa de pc. O valor exacto está entre 0.59 e 0.595. No entanto, na vizinhança de pc é extremamente difícil extrapolar: perto da probabilidade crítica o método ‘falha’ dado que o sistema está sujeito a grandes flutuações.
Já vimos que no limite de um sistema infinito, pc é um número mágico. Precisamente para este valor, ocorre uma transição de fase e o sistema exibe um agregado ‘gigante’, isto é, o agregado principal estende-se pela primeira vez a toda a escala do sistema. Vamos agora investigar a estrutura deste agregado. Observe as figuras abaixo.
Estas figuras mostram 3 configurações para p = 0.5, p = 0.593 e p = 0.65, respectivamente.
Na figura da esquerda o sistema está claramente abaixo do limiar de percolação. A azul está assinalado o agregado principal: o maior número de quadrados pintados ligados entre si. Vemos um pequeno agregado onde cada quadrado tem uns poucos vizinhos pintados, uma ilha num mar com inúmeras ilhotas. Note que no limite de um sistema infinito, abaixo do limiar de percolação, o tamanho do agregado principal é desprezável, uma vez que é constituído por uma fracção de quadrados que tende para zero quando o tamanho do sistema aumenta.
Na figura da direita o sistema está acima do limiar de percolação e a sua descrição é a oposta. A verde está assinalado o agregado principal, que percolou, estendendo-se à escala do sistema. No limite de um sistema infinito a maior parte dos quadrados pintados pertence ao agregado principal, formando uma massa continental uniforme, sobrando apenas pequenas ilhas (a vermelho) de quadrados pintados, desligadas umas das outras.
Na figura ao centro, p está muito próximo da probabilidade crítica e a estrutura do agregado de percolação é particularmente interessante. Podemos observar um agregado pouco uniforme, muito ‘recortado’, com buracos de todos os tamanhos e com uma fronteira irregular que percorre todo o sistema. O curioso é que cada um destes buracos, como o que nos mostra a figura em tons de vermelho, quando ampliado exibe a mesma estrutura que o agregado principal, isto é, numa escala mais pequena, o agregado principal tem uma estrutura semelhante, é ‘recortado’, com buracos de todos os tamanhos e com uma fronteira irregular. No limite de um sistema infinito, em p = pc, o agregado de percolação é semelhante em todas as escalas. Qualquer ampliação de uma parte do sistema apresenta o mesmo tipo de estrutura. Isto é um exemplo de invariância de escala, semelhante à que descrevemos no contexto das transições de fase térmicas, e significa que a estrutura do sistema no ponto crítico – neste caso, o limiar de percolação - é complexa.
A fronteira do agregado de percolação, na transição, é semelhante a uma linha de costa, uma curva irregular (com estrutura) em todas as escalas. Outro exemplo de uma curva com estrutura em todas as escalas é o floco de neve de Koch, ilustrado na figura anterior, que também é caracterizado por invariância de escala. Este é, aliás, um dos exemplos clássicos de um fractal geométrico, um objecto tão rugoso, que sendo mais do que uma curva mas menos do que uma superfície, é caracterizado por uma dimensão fraccionária. Neste contexto, o agregado de percolação, sendo menos do que uma superfície - está esburacado em todas as escalas - mas mais do que uma curva, tem também uma dimensão intermédia: é um fractal aleatório.
Vamos continuar a análise do agregado de percolação fazendo uma nova pergunta: Qual é a fracção F de quadrados que pertence ao agregado principal? No limite do sistema infinito, para p < pc, abaixo do limiar de percolação, a razão entre o conjunto finito de quadrados que formam o agregado principal, e o conjunto infinito de quadrados do sistema é 0, pelo que F = 0. Acima do limiar de percolação, quando p se aproxima da probabilidade crítica, pc , verifica-se que F se anula lentamente, como uma lei de potência:
F = Fo(p - pc)β
ondeβ é um expoente crítico, uma medida da rapidez com que a fracção de quadrados no agregado de percolação se anula, quando p tende para pc. Sabe-se que β = 5/36 ≈ 0.139.
O applet permite-nos traçar o gráfico desta lei. Seleccione no menu à direita a opção F - calculator. Em seguida escolha o tamanho do sistema e prima auto. O applet corre várias configurações calculando para cada p a fracção média de quadrados no agregado de percolação. O gráfico mostra que, para probabilidades abaixo do limiar de percolação, F tende para zero à medida que o tamanho do sistema aumenta. Acima do limiar de percolação, o comportamento do sistema não é tão claro. Sabemos que quando p = 1, F = 1 uma vez que todos os quadrados pertencem ao agregado de percolação. Para outras probabilidades, F decresce rapidamente para 0, à medida que p se aproxima de pc, e anula-se no ponto crítico. Este é outro resultado curioso! Apesar de em p = pc o agregado percolar, no limite de sistemas infinitos, a fracção de quadrados que o constitui é zero, como consequência da sua estrutura fractal, figura da direita.
Hoje sabe-se que os expoentes críticos são ‘universais’. Se calcularmos β para outros problemas de percolação bidimensionais, onde em vez de redes quadradas se consideram redes triangulares ou hexagonais (favos de mel), ver figura seguinte, obtemos sempre o mesmo valor! Isto significa que a estrutura do agregado de percolação não depende dos detalhes microscópicos do sistema e é um exemplo de universalidade: uma propriedade profunda dos sistemas físicos perto de uma transição de fase.
Como dissemos, a transição de percolação tem características análogas às transições de fase térmicas. Na transição de percolação a estrutura do sistema é caracterizada por uma distribuição de agregados em lei de potência e o sistema é invariante para transformações de escala. Esta invariância resulta de flutuações no tamanho dos agregados em todas as escalas, e implica a dimensão fractal do agregado de percolação.
Como varia o número de quadrados no agregado principal com o tamanho do sistema, M(L), nos 3 regimes que identificamos acima: p < pc, p = pc e p > pc? As simulações mostram que:
ln(L) para p < pc |
Neste regime, independentemente do tamanho do sistema, o maior agregado é uma pequena ilha que cresce lentamente com o tamanho do sistema. ln(L) é uma função que cresce mais devagar do que qualquer lei de potência. |
Ld para p = pc |
Onde d = 1.89 ± 0.03. Como pode aprender no módulo fractais e a geometria da natureza, este valor é a dimensão do agregado de percolação, que não é uma superfície (d = 2) nem uma curva (d = 1), mas um fractal aleatório. |
L2 para p > pc |
Neste regime o agregado de percolação é compacto e tem a geometria habitual: uma superfície com d = 2. |
Os resultados de vários estudos (numéricos e analíticos) indicam que o valor de d é universal, ou por outras palavras, é o mesmo para todos os problemas de percolação em redes bidimensionais. Por outro lado, o limiar de percolação, pc , não é universal e depende da geometria particular de cada rede.
Um processo de percolação consiste na propagação do estado de uma célula activa às células vizinhas, que depois de activadas continuam o processo. O processo termina quando não há mais células do agregado possam ser activadas. Usando o exemplo de percolação de sítios, descrito acima, um quadrado vermelho pode ser activado pintando-o de outra cor e o processo consiste na propagação da nova cor às células do agregado (vermelhas).
A duração do processo de percolação depende de dois factores: o tamanho do agregado e a forma como está ligado. Quanto ao primeiro, é evidente que quanto maior for o agregado maior é a duração do processo. O segundo é mais subtil mas revela-se mais importante: um agregado muito ligado percola mais rapidamente do que um pouco ligado, porque no primeiro cada célula activa um número maior de células vizinhas.
Podemos agora fazer um novo tipo de perguntas: Dada uma densidade de células, qual é a probabilidade de, activada uma ao acaso, activar um agregado que se estenda a toda a escala do sistema? Como depende o processo de percolação da densidade de células activas, ou da sua conectividade?
Os processos de percolação jogam um papel crucial em muitas aplicações, em particular, no estudo da propagação de fogos florestais .